quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

AS BALEIAS NÃO QUEREM SER IMPORTUNADAS

 

Barros Alves

 

A baleia não é peixe, não têm guelras. É o maior mamífero marinho, chegando a medir trinta metros de comprimento e pesar duzentas toneladas. Vê-se, portanto, que a baleia, como é um mamífero, tem porte para grandes mamadas. Ou mamatas. Nos tempos atuais, em face da distorção de valores e ordens naturais, não devemos nos espantar se em vez de mamadas as baleias forem tão excelentes mamateiras quanto são mamadoras. Até já pegaram uma como exemplar de alta susceptibilidade e tem gente sendo obrigado a depor na condição de réu por ter perturbado o descanso dela. Não sei se elas falam a nossa linguagem, se fizeram a denúncia formalmente, se assinaram procuração para o procedimento acusatório contra esse monstro que de forma altamente periculosa invadiu a privacidade da coitadinha. Essas coisas ninguém sabe. Mas, diante desse novo FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País, em nossa Pátria amada pode-se esperar qualquer coisa das baleias. Tem até um protótipo de uma no Ministério da Justiça, às portas do STF. Todavia, nos mares ou na terra as baleias se dão bem. Porque não são peixes. Se fossem, talvez não se dessem tão bem assim, porque no Brasil o mar não está pra peixe.

Na verdade, as baleias não estão muito satisfeitas com os mamíferos bípedes inteligentes. Principalmente se eles tiverem alguma relação com o mar e desejarem nadar em águas claras, límpidas, transparentes. Algumas baleias que o Brasil bem conhece de outros carnavais (ou seria lamaçais?), preferem mares revoltos, de escolhos, tempestuosos. Para essas, quanto pior o mar estiver, melhor. Aliás, ontem elas se revoltaram contra uma turma de bípedes e até providenciaram uma batida no apartamento de um “homem do mar”. Acho que ele também deve ter importunado não uma, mas muitas baleias. Elas certamente subtrairão (isso sabem fazer espertamente) o tridente de Poseidon ou de Netuno para causar um terremoto (ou maremoto, como queiram), um tsunami para ser mais politicamente correto, nos mares encapelados em que está a navegar o Brasil.

No Brasil de hoje não temos baleias azuis, são vermelhas. Mais perigosas do que todas. O que me leva ao mar de Castro Alves no “Navio Negreiro”, o canto mais lancinante em busca de liberdade. Quando vejo essas baleias rubras hei de inexoravelmente exclamar com o poeta: “Mas, o que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!/ É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!” Entendo que as baleias não queiram ser importunadas e que desejem avermelhar tudo igualmente a elas. É certo que uma multidão bípedes mamíferos não concorda com as baleias que inexplicavelmente se sentem importunadas. Porém, com o seu silêncio, por medo ou pusilanimidade, ou por cumplicidade, o que me parece mais vergonhosamente apropriado aos baleiófilos, essa multidão aceita passivamente a situação “cambaleiante”. E eu corro novamente ao poeta da liberdade: “Existe um povo que a bandeira empresta/ P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!.../ E deixa-a transformar-se nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria!.../ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/ Que impudente na gávea tripudia?/ Silêncio. Musa... chora, e chora tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto!.../// Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra/ E as promessas divinas da esperança.../ Tu que, da liberdade após a guerra,/ Foste hasteado dos heróis na lança/ Antes te houvessem roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!...” Tenho a esperança de que o mar pode até se tingir de vermelho com o sangue de brasileiros, como no relato bíblico do povo hebreu em busca de libertação, mas a nossa bandeira jamais será vermelha. Ah, em homenagem ao maior poeta brasileiro, não devo omitir o Parecer do crítico Agripino Grieco: “Castro Alves não foi um homem, foi uma convulsão da natureza.”

domingo, 21 de janeiro de 2024

A IDADE DO CEARÁ

 

                                                                             Fortaleza em 1811

Barros Alves

 

O sempre deputado Heitor Férrer, a quem tive a honra de prestar assessoria durante cerca de  quinze anos, divulgou um vídeo conclamando o povo do Ceará para comemorar a emancipação político administrativa do nosso Estado, no que fez muito bem. Urge, nestes tempos de miséria da memória, resgatarmos datas, fatos e personalidades importantes da nossa História. É certo que por decisão da Rainha Maria I desvencilhamo-nos de Pernambuco em razão da Carta Régia datada de 17 de janeiro de 1799. Porém, na condição de “advocatus diaboli”, fiz uma ressalva ao vídeo que apresenta o dístico “Ceará – 225 anos”, ensejando a que o receptor da mensagem pense que esta é a idade do Ceará. O Ceará, na verdade já completou 420 anos de existência, em agosto do ano passado, posto que o nobre açoriano Pero Coelho de Sousa, em demanda do Maranhão, aportou no “País do Jaguaribe” em 1603, daí seguindo rumo à foz do Rio Siará. Sobre isto divergem perifericamente alguns historiadores. Por outro lado, o que é pior, alguns políticos vivem a mudar datas, institucionalmente, ao sabor dos poderes que exercem de modo circunstancial. É o caso da equivocada data comemorativa do aniversário de Fortaleza. Mas, isso são outros quinhentos.

O fato é que quem primeiro pôs os pés nesta terra como capitão-mor de uma expedição exploradora, criada com o fito mesmo de descobrir terras e delas se apossar, juntamente com os seus bens, é claro, foi grande guerreiro Pero Coelho de Sousa, experiente em batalhas de ultramares. O meu melhor padrinho nesta definição de data chama-se Guilherme Chambly Studart, o Barão de Studart, um homem extraordinário que deu inestimável colaboração para nossa história, gastando tempo e pecúnia, em garimpar documentos sobre a formação do povo cearense em arquivos existentes do outro lado do Atlântico. O Barão de Studart, patrono da cadeira que ocupo na Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, mobilizou céus e terra para comemorar o tricentenário da independência do Ceará em 1903, tomando por base do nosso descobrimento, portanto, a data em que aqui aportou Pero Coelho de Sousa. O Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), pelos seus preclaros sócios ao tempo das comemorações, deixou significativo registro em tomo especial. O mais é narrativa especulativa para encher compêndios.

Quero, todavia, para o conhecimento dos meus leitores, referir-me à documentação que nos concedeu a emancipação político-administrativa de Pernambuco. Lembrando que antes havíamos pertencido ao Maranhão, o que em nada contribuiu para o desenvolvimento da pequena gleba, tais as lamentações de Martim Soares Moreno que, aliás, foi o primeiro a sugerir a mudança da tutela para o Pernambuco. O Barão de Studart, à custa de muita dedicação, conseguiu amealhar um tesouro de documentos, sem os quais pouco saberíamos sobre o descobrimento, conquista e exploração das terras do Siará Grande. Muitos desses documentos foram transcritos em várias edições da Revista do Instituto, em “Datas e Fatos para a História do Ceará” e em “Notas para a História do Ceará”.  Nestas recolho a Carta Régia que proporcionou nossa emancipação. Transcrevo-a:

“Reverendo Bispo de Pernambuco, do meu Conselho e mais Governadores Interinos da Capitania de Pernambuco: Eu, a Rainha, vos envio muito saudar. Sendo-nos presente os inconvenientes que se seguem tanto ao meu real serviço como ao bem dos povos da inteira dependência e subordinação em que os governadores das Capitanias do Ceará e da Paraíba se acham do Governador da Capitania de Pernambuco que pela distância em que  reside não pode dar com a devida prontidão as providências necessárias para a melhor economia interior daquelas Capitanias principalmente depois que elas têm aumentado em povoação, cultura e comércio: Sou servida separa as duas Capitanias do Ceará e Paraíba da subordinação imediata do Governo Geral de Pernambuco em tudo o que diz respeito a propostas de Oficiais Militares, nomeações interinas de ofícios e outros atos de Governo; ficando porém os Governadores das duas ditas Capitanias obrigados a executar as ordens dos Governadores de Pernambuco no que for necessário para a defesa interior e exterior das mesmas Capitanias e para a polícia e segurança interior das mesmas: Igualmente determino que do Ceará e Paraíba se possa fazer um comércio direito com o Reino para o que se estabelecerão em tempo e lugar conveniente as casas de arrecadação que forem precisas e se darão outras providências que a experiência mostrar serem mais úteis e adequadas para facilitar e aumentar a comunicação imediata e o comércio das ditas duas Capitanias com este Reino,  o que vos participo para que assim  o fiqueis entendendo. Escrita no Palácio de Queluz aos dezessete de janeiro de mil setecentos e noventa e nove. – O Príncipe. Para o Bispo de Pernambuco e mais governadores interinos da mesma Capitania.”  Note-se que a decisão oficial da Rainha foi assinada pelo Príncipe Regente Dom João.

Bernardo Manuel de Vasconcelos foi designado primeiro governador do Ceará. Este desconhecido da maioria, só há poucos anos foi lembrado pelo poder público que em sua homenagem nomeou avenida de Fortaleza, via que começa no viaduto da Avenida Carlos Jereissati (Aeroporto Pinto Martins) e segue até o Bairro Prefeito José Walter. A Rainha remeteu a Carta Régia ao escolhido juntamente com a missiva que segue:

“Bernardo Manuel de Vasconcelos, chefe de Esquadra da minha Armada Real e Governador da Capitania do Ceará: Eu a Rainha vos envio muito saudar. Pela Carta Régia de que achareis junto à cópia fui servida separa a Capitania do Ceará da imediata subordinação, em que se achava do Governo Geral de Pernambuco com as limitações ali apontadas: O que me pareceu participar-vos para vossa inteligência esperando que esta mais ampla jurisdição, que vos confio,  vos dará uma maior facilidade para promover todos os objetos de utilidade pública e para vos empregardes com a maior eficácia e zelo em tudo o que puder concorrer para a felicidade desses povos. Escrita no Palácio de Queluz aos dezessete de janeiro de mil setecentos e noventa e nove. – O Príncipe.”

Somente a 23 de maio de 1799 o governador designado deixa Lisboa. Demora-se em Recife, onde aportara em agosto, e só chega ao Ceará em 25 de setembro, tomando posse a 28 daquele mês. Sabe-se que dentro de suas limitações e competências, Bernardo Manuel de Vasconcelos se houve com aprumo e realizou um bom trabalho como administrador da Capitania do Ceará.

Lembre-se, a título de curiosidade, que Fortaleza no início do século XIX não passava de uma pequena vila. Centros cheios de vida e desenvolvimento, consoante o relato do próprio Governador, eram Santa Cruz do Aracati, Sobral e Granja. Esta, naqueles dias, tinha “um grande comércio de carnes e algodão, que atrai pelo seu cômodo muitas embarcações e traficantes de Capitanias circunvizinhas, vila tão celebrada na história do Padre Vieira, pela pesca, que nela havia do coral e âmbar-gris.” Bernardo de Vasconcelos dá uma ideia do acanhamento de Fortaleza, que passava a ser a capital da Capitania: “É de menor extensão e povoação a Vila da Fortaleza onde reside o governador e se acha acantonada uma única companhia de tropa paga, que guarnece a Fortaleza da Assunção estabelecida nas praias do oceano. O mesmo se observa na Vila do Aquiraz, cabeça de Comarca, e residência do ouvidor-geral, aonde os jesuítas tinham o seu colégio.” Bernardo Manuel de Vasconcelos governou o Ceará até 8 de novembro de 1802.

O resgate dessas datas e fatos deve ser feito não apenas por diletantismo, mas sobretudo e necessariamente como um objeto de reflexão para as atuais gerações, as quais podem fazer comparações ao observarem o comportamento dos homens e o processo de desenvolvimento dos lugares que governaram. Um caso que se presta ao estudo e análise o de Granja, que nos inícios tinha tudo para ser pujante, mas estacionou no tempo. Um caso a ser investigado por historiadores e sociólogos.