sexta-feira, 24 de junho de 2011

Escritor Orlando Figes: Os horrores do stalinismo











"Com democracia, as pessoas não se calam mais"

Entrevista do escritor britânico Orlando Figes, especialista em História da Rússia, ao jornalista Silio Boccanera para o programa Milênio, da Globo News, transmitido em agosto de 2010. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Os horrores do stalinismo na União Soviética já são conhecidos do público, hoje, mais ainda depois da implosão do comunismo nos anos 1990. O que ainda continua a ser descoberto na Rússia são os efeitos da repressão totalitária sobre a vida privada dos cidadãos comuns e o impacto que famílias e crianças sofreram com prisões em massa, fuzilamentos, campos de trabalho forçado, o gulag. Sob vigilância permanente, elas aprenderam a não falar, dizer pouco, cultivavam os murmúrios ou sussurros. Essa cultura de medo é o tema do novo livro de Orlando Figes, conceituado especialista britânico em Rússia e atual professor na Universidade de Londres. O livro de Figes — Sussurros — A vida privada na Rússia de Stalin — foi lançado no Brasil em agosto do ano passado. Figes morou na Rússia, na época comunista. Volta lá com frequência para pesquisar e escrever livros e artigos sobre o país, que escapou do stalinismo, mas pode estar hoje, segundo ele, a caminho do totalitarismo, com Vladmir Putin na presidência.

Silio Boccanera – O senhor se concentra em nos contar, em seu livro, o que aconteceu não só com oponentes políticos do regime, mas com famílias e crianças. Entre essas histórias horríveis, alguma em particular o tocou, como sendo mais representativa dos horrores que abalaram as famílias?
Orlando Figes – Há tantas... Eu começo o livro com a história da Rússia. Eram camponeses sérios, que trabalhavam duro, mas que se opunham à ideia de fazenda coletiva, introduzida forçosamente durante a coletivização pelo regime stalinista, que os faria perder propriedades e animais. A família Galovina foi acusada, como milhões de outras, de ser uma família de cúlaques, de exploradores capitalistas. Mentira. Eram camponeses que trabalhavam duro. O pai e muitos dos primos da Antonina, a heroína da história, foram enviados a um campo de trabalho. Muitos parentes dela fugiram de uma aldeia, onde seus ancestrais viveram por centenas de anos. Antonina, os irmãos mais novos e a mãe foram exilados na Sibéria, em um povoado distante, sob condições terríveis. Metade da população das famílias de cúlaques, como a Galovina, morreu de doenças e fome nos dois ou três anos que ficou lá. Antonina, finalmente, voltou a morar com o pai, libertado do campo de trabalhos forçados, nos anos 30, em uma cidade com famílias na mesma situação. Mas ela sentia o estigma da opressão. Toda vez que ela queria progredir na escola, ou entrar para o Komsomol, a Liga da Juventude Comunista, como as outras crianças, ela se sentia discriminada por sua origem de cúlaque, por essa “imperfeição” em sua biografia. Aos 18 anos de idade, ela quis fazer faculdade de Medicina. Ela decidiu esconder sua biografia imperfeita e viver com documentos falsos. Ela escondeu sua identidade verdadeira durante 50 anos. Ela nunca contou a nenhum de seus colegas do instituto pediátrico onde trabalhava, em São Petersburgo, como chamamos agora. Ela teve dois maridos e viveu mais de 20 anos com cada um. Nenhum deles sabia sobre a biografia imperfeita dela. Sua primeira filha, nascida em 1947, não soube nada de sua origem de cúlaque até o fim dos anos 1990. Ela falou conosco, pela primeira vez, sobre esse passado escondido. Para mim, isso denota e simboliza um modo de vida. Não era incomum o modo de vida dela. Na verdade, ela não sabia que seu primeiro marido também tinha uma biografia imperfeita. Viveram juntos sem contar um ao outro o fato mais básico a respeito de si. No final dos anos 1980, uma tia idosa dele apareceu na casa de Antonina, procurando o tal ex-marido. Elas conversaram, e a tia deixou escapar que esse ex-marido havia sido filho de um oficial naval do czar, morto pelos bolcheviques em 1917. Durante a vida inteira dele, ela guardou um papel em que anotava os fatos básicos da biografia inventada dele, para ele responder questionário ao se candidatar a empregos e não ser pego. Mas ele nunca contou nada a Antonina.

Silio Boccanera – Você cita um filósofo da Educação do Partido Comunista russo da época, dos anos 1920. Ele escreveu: “Ao amar um filho, a família o transforma em um ser egocêntrico, encorajando-o a se ver como o centro do universo.” O amor dos pais, na época, era um conceito que não servia ao sistema.
Orlando Figes – Era. Certamente, na primeira década, no período utópico do regime soviético, isso estava no cerne da ideologia bolchevique. Eles não escondiam isso. Era bem explícito. Eles acreditavam que a família desapareceria. Ela seria substituída por formas superiores de família, como o Partido e a sociedade com um todo. O lar seria substituído pela vida em comunidade. As crianças sairiam dos cuidados egocêntricos dos pais e iriam para os cuidados de jardins de infância. Isso criaria um novo tipo de ser humano. Era o objetivo máximo da revolução: criar um tipo de personalidade coletiva em seus instintos, e não mais individualista. Essa era a essência do socialismo para a primeira geração de bolcheviques. Todos os sistemas de valores, como, por exemplo, a ideia de que devemos amar nossos parentes, eram desafiados pela moralidade do Partido. No auge disso, nos anos 1930, surgiu o culto ao herói juvenil Pavlik Morozov, que supostamente denunciou o pai por ser um cúlaque, um inimigo do regime soviético, e que, por isso, foi assassinado pelos chamados “parentes cúlaques” do pai. Ele foi transformado em mártir. As crianças eram educadas, em escolas soviéticas, para seguir a moralidade de Pavlik, pondo o Partido acima da família. Temos que ter em mente que a geração dos anos 20 que ia às escolas soviéticas não tinha um sistema alternativo de valores. Os dos pais e dos avós estavam sendo suprimidos. Não era fácil ensinar valores cristãos às crianças quando, na escola, mandavam que elas fossem ateias. Há um fator repressivo sobre os sistemas alternativos. Durante 70 anos, essencialmente, o Estado teve liberdade para influenciar a vida das pessoas por meio de escolas, universidades, de ligas juvenis, clubes comunistas, do Partido, do controle sobre escolhas profissionais e de medidas repressivas com que se ameaçava quem tinha um pensamento alternativo ou divergente ou quem se comportava de modo antissocial. Esse sistema de crenças cria muito mais coisas do que apenas preceitos ideológicos, cria um modo de vida. As pessoas não têm como fugir dele, sob vários aspectos.

Silio Boccanera – Um exemplo extremo talvez seja o que Stalin fez a Trotski. Ele mandou matar o irmão dele, a irmã dele, sua primeira esposa, seus dois filhos e os dois ex-maridos da filha de Trotski. E a filha acabou se matando. A punição recaiu sobre o resto da família.
Orlando Figes – Acho que Stalin e a cultura do partido, como um todo, achavam que a família era coletivamente responsável por cada um de seus membros. Assim, se uma esposa não denunciava o marido, e ele acabava preso como inimigo do povo, isso mostrava, no mínimo, que a esposa compartilhava das opiniões do marido ou tentava protegê-lo, o que podia ser falta de vigilância, mas, possivelmente, algo pior. A esposa estava sujeita à prisão ou, simplesmente, à expropriação de seu apartamento, perda de propriedades, do emprego e de tudo o mais.

Silio Boccanera – Havia pessoas que acreditavam no sistema, que acreditavam em Stalin, que o idolatravam. Isso existia concomitantemente, não? Era produto da educação, da lavagem cerebral ou do quê?
Orlando Figes – Existia porque as pessoas estavam comprometidas com os ideais da revolução. Elas nasciam nesse sistema e aprendiam isso na escola, não havendo valores alternativos para questionar isso. Até certo ponto, é um dos maiores paradoxos que achamos em nosso projeto. Mesmo aqueles que foram reprimidos, mesmo aqueles cujas famílias passaram pelo sistema gulag, mesmo os que foram para gulags e voltaram profundamente feridos, tendo perdido o marido ou perdido os filhos, voltavam, em muitos casos, com sua fé intacta.

Silio Boccanera – Fé no sistema, na ideologia.
Orlando Figes – Com a fé intacta. Há uma pessoa com quem fizemos várias entrevistas: Dimitry Streletsky. Assim como Antonina Galovina, a filha do cúlaque, ele veio de outra família de cúlaques. Sua família foi destruída. Foi tirada de seu lar, que foi incendiado. Pai, mãe e 14 filhos foram enviados ao exílio. Metade deles morreu de fome. E Dimitry morava em um assentamento especial, era um rapaz inteligente e foi ajudado pelo comandante do povoado. Ele frequentou a escola, e permitiram que ele fizesse faculdade. Mas ele sofria discriminação, como Antonina. Ele tinha um estigma. Ele disse muitas vezes, em entrevistas, tentando explicar a si mesmo, que ele acreditava em Stalin e acreditava na existência de inimigos do povo, mesmo após sua família ter sido dizimada, tachada de inimiga do povo. Segundo ele, isso tornava a sobrevivência mais fácil. Era mais fácil continuar se você visse alguma lógica no que estava acontecendo.

Silio Boccanera – Como: “Pelo menos, eles estavam tentando criar um homem novo.”.
Orlando Figes – Algumas pessoas que voltavam dos campos de trabalho se orgulhavam de sua contribuição ao sistema soviético, como trabalhadores escravos em gulags. Mas pelo menos, havia um lógica no que eles faziam.

Silio Boccanera – Qual é a sua impressão sobre Stalin? Trotski dizia que ele era a mais eminente mediocridade. Uns achavam que ele era um gênio. Outros achavam que ele tinha problemas mentais. O que Stalin era?
Orlando Figes – Talvez um pouco de tudo isso. No fim, creio que Stalin fosse, provavelmente, impenetrável. No livro, ele é a presença dominante. Ele é uma presença na vida de todo mundo, mas ele não tem um perfil, é uma figura nebulosa. Não há fotos dele até a parte final do livro, quando o escritor Simonov, que é o anti-herói trágico central do livro, é mostrado. Ele é preso, como escritor, pela repressão de Stalin. Ao mesmo tempo, se sente mal por seus próprios atos e sente remorso por isso. Stalin não é apresentado visualmente no livro até Simonov aparecer em um congresso de escritores com um imenso pôster de Stalin atrás da tribuna. Eu quis imbuir o livro desse clima. Nebuloso... Uma figura nebulosa que domina a vida das pessoas. Por isso, quando ele morreu, tanta gente chorou. Talvez por remorso ou medo do que viria a seguir. Mas, acima de tudo, porque essa figura dominava a vida das pessoas. Era ele quem dava às pessoas o direcionamento moral.

Silio Boccanera – As coisas mudaram substancialmente, no sentido dos sussurros de que estamos falando, de as pessoas serem desconfiadas?
Orlando Figes – Imediatamente após Stalin, houve muita confusão. Ainda existe muito medo. O medo não passou logo. Na verdade, logo após a morte de Stalin, as pessoas temiam que o pior acontecesse. Elas se lembraram da morte de Kirov, em 1934. Ele era um líder popular do Partido. Logo após, veio o terror, o Grande Expurgo, em 1937.

Silio Boccanera – E Kirov era amigo de Stalin.
Orlando Figes – Em 1953 e 54, ainda havia dúvidas quanto ao futuro e medo de que o pior pudesse acontecer. Kruschev, em seu discurso de 1956, revela os crimes de Stalin ou o “culto à personalidade”, um eufemismo que ele usava. Talvez, nesse momento, o medo tenha se dissipado. Não se sabia, nos anos 50 e no início dos 60, o quanto aquilo iria durar. Não havia um liberalismo completo. Houve liberalização em algumas esferas, mas ainda se temiam revoltas contra o controle político. As pessoas que entrevistamos eram pessoas comuns. Lendo memórias de membros da intelligentsia, como o de Nadezhda Mandelstam, temos a impressão de que após o discurso de 1956, todo mundo falava livremente. Não foi nossa impressão. Entrevistamos centenas de pessoas em pequenas cidades provincianas, pessoas comuns, e elas ainda demonstram muito medo. Essa cultura do silêncio, do sussurro, da desconfiança das pessoas de fora do círculo familiar mais próximo, isso continuou. Os que voltavam dos campos ainda tinham medo demais para contar aos filhos pelo que passaram, em parte, por terem assinado, na libertação, declarações de que não falariam do que ocorreu e porque talvez estivessem traumatizados demais, com medo de ninguém entender o que eles haviam passado, de haver uma incompreensão insuperável. Mas, talvez, acima de tudo, porque eles tinham medo de isolar seus filhos. Se os filhos soubessem, se tornariam antissoviéticos. Eles não queriam que isso ocorresse. Era perigoso ser antissoviético.

Silio Boccanera – A Rússia, até hoje, apesar da abertura e de tudo que houve, ainda parece relutante em lidar com o passado stalinista. Diferente da Alemanha, que lidou com o nazismo, e do Japão, em menor grau.
Orlando Figes – É o legado do período stalinista. Ainda é, em muitos aspectos, uma sociedade traumatizada pelo choque de 1937, quando foram executadas mais de um milhão de pessoas, e, certamente, por ondas posteriores de repressão. Isso atravessa várias gerações. Não acabou. Essa espécie de conformismo da geração de Brejnev, para mim, é uma razão fundamental para o regime soviético ter durado tanto. O idealismo tinha acabado. Sabia-se que o sistema não funcionava mais. Mas não havia resistência ativa a ele. O número de resistentes ativos era mínimo.

Silio Boccanera – Nos anos 1960 e 1970?
Orlando Figes – No final dos anos 60 e nos anos 70 e 80. Havia poucas pessoas contrárias ao sistema, os dissidentes. Mas o número de pessoas que o apoiava era imenso. Elas não se envolviam politicamente, por causa, na minha opinião, dessa cultura da lealdade, de não expor suas ideias, e de se calar sobre suas opiniões verdadeiras. As pessoas entram para o Partido por conformismo, porque isso ajuda profissionalmente. As pessoas evitam fazer questionamentos morais sobre o próprio comportamento, quanto mais sobre o de seus pais. Essa cultura política se manteve e ainda existe hoje.

Silio Boccanera – Em relação à chamada “sociedade pós-soviética”, Gorbachev, Yeltsin e Putin assumiram o poder e mostraram indícios de autoritarismo. Você sente que a Rússia se dirige lentamente para uma espécie de ditadura?
Orlando Figes – Acho que sim. Em minha opinião, Putin tem sido, obviamente, autoritário. Há provas incontestáveis de represálias a qualquer forma de oposição, de controle da mídia, e por aí vai. Mas isso funciona também de modo mais sutil. Funciona em termos... Na sociedade pós-soviética, os direcionamentos do governo mudam muito facilmente. De repente, as pessoas retomam velhos hábitos, aprendidos no período soviético, de não mais criticar Putin abertamente caso elas trabalhem para o governo, em cargos públicos menos importantes. Isso já acontece.

Silio Boccanera – Não só no caso de Putin...
Orlando Figes – Não é preciso fazer muito. A retórica e os slogans precisam mudar. Os slogans e o uso de simbolismo histórico. É preciso mudar. Putin tem a mesma retórica dos líderes soviéticos; o mesmo nacionalismo; o constante refrão sobre conquistas soviéticas, as conquistas da União Soviética durante a guerra, e sobre inimigos tramando contra a Rússia. Toda essa retórica. Essencialmente, ele adotou a retórica stalinista. Ele recuperou a boa reputação de Stalin. Ele mandou os professores ensinarem na escola que Stalin era bom, que cometeu erros, mas que a Rússia deveria se orgulhar daquele período. Isso, imediatamente, mudou a orientação para, de certa forma, voltar ao padrão inicial, digamos, de não questionar a autoridade política. Isso tem a ver com algo que vimos em nosso projeto, que é uma nostalgia não só do período soviético, mas do período stalinista, como sendo um período de estabilidade e segurança. Uma época em que os russos se sentiam bem sendo russos. Havia um orgulho nacional. Isso contrasta fortemente com o período de Gorbachev e Yeltsin, quando houve o colapso do Estado, a perda do império, o colapso da economia, a vergonha do que acontecera no período de Stalin... Era uma humilhação nacional para muitos russos. De repente, a orientação mudou.

Silio Boccanera – Você está dizendo que, 60 anos após a morte se Stalin e 17 anos, mais ou menos, desde o fim do comunismo na Rússia, os russos estão sussurrando de novo?
Orlando Figes – Depois que o gênio sai da garrafa, não dá para pôr de volta. Mas há um novo tipo de cautela. Ao mesmo tempo, ironicamente, muitos dizem que o auge da história oral, por exemplo, das pessoas contando experiências, foi o início dos anos 1990. Nós descobrimos, entrevistando todas essas pessoas entre 2003 e 2006, que, apesar do medo, apesar de todas essas vítimas da opressão terem mais medo de falar, elas tinham mais coragem de falar. Talvez, por causa dessa nova retórica de Putin, elas se sentissem mais marginalizadas na sociedade. Elas receavam que ninguém ouviria suas histórias. Isso deu a elas a determinação de falar, apesar dos perigos. Eu tenho muita esperança, apesar de, no momento, o clima não ser propício à divulgação dos crimes de Stalin ou do sofrimento pelo que as pessoas passaram, pelo que os ancestrais delas passaram no regime de Stalin. Minha opinião é que, uma vez a democracia tendo entrado em cena, como entrou nos anos 1990, as pessoas não ficam caladas e covardes para sempre.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Corpus Christi

Aldo Pereira

Quanto de interesse a festa de Corpus Christi ainda inspira nos brasileiros? Ao que parece, a maioria prefere caipirinha e petiscos em vez de pão e vinho

Feriado de Corpus Christi: venha curtir o arraial da alegria do Cabreúva Resort. Reserve já! (Anúncio de hotel paulista na internet.)
Embora Jesus haja instituído a eucaristia (comunhão) na ceia da Quinta-Feira Santa, a Igreja Católica comemora o sacramento também no feriado de Corpus Christi ("corpo de Cristo"). A mesma festividade reafirma, ainda, o dogma da transubstanciação, ou Presença de Cristo, na cerimônia da comunhão.
Judaísmo e cristianismo evoluíram a partir de culturas agrícolas de povos para os quais a realidade do cotidiano evidenciava sujeição da existência a poderes sobre-humanos e inspirava o animismo, do qual é plausível supor terem provindo todas as religiões.
Daí ritos sacrificiais propiciatórios, reconhecimento simbólico de que animais e plantas não pertencem a quem os consome, mas, sim, a potestades que lhes proveem sustentação da vida. Levítico, terceiro livro da Bíblia católica, dedica seus primeiros sete capítulos a prescrições do cerimonial de sacrifício.
Jesus ("Cordeiro de Deus") aboliu tacitamente o sacrifício de animais e o substituiu pelo sacrifício simbólico de si mesmo ao determinar que o pão e o vinho da Santa Ceia representariam o corpo e o sangue dele.
Em 1245, santa Juliana (1193-1258), prioresa de convento na diocese belga de Liège, revelou ao bispo Robert de Thorete que Jesus inspirava nela, insistentemente, a visão de mancha (ou linha) preta no disco da lua cheia. Ainda, noutra visão, Jesus lhe teria interpretado o augúrio como recomendação de a eucaristia ser comemorada em festividade e data especiais.
Impressionado e persuadido, o bispo recorreu à autoridade episcopal que então lhe cabia para, em 1246, convocar um sínodo, no qual se resolveu que, a partir do ano litúrgico seguinte, a diocese celebraria um feriado comemorativo da eucaristia. A festividade incluiria procissão para expor ao povo uma hóstia consagrada, acondicionada em ostensório.
O bispo morreu sem ter visto a festa, que, aprovada por vários papas, continua celebrada em muitos lugares, seja na quinta-feira, seja no domingo seguinte.
No dia 11 de outubro de 1551, a 13ª sessão do Concílio de Trento estabeleceu como dogma (ponto doutrinário não sujeito a discussão) que, na consagração da hóstia e do vinho, "a substância integral do pão se converte na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e a substância integral do vinho [se converte] na substância de seu sangue (...)".
Mas note: o magistério católico justifica a presença de Jesus na comunhão como essencialmente espiritual: nenhuma análise de laboratório poderia detectar diferença material na composição da hóstia e do vinho por efeito da consagração.
Quanto de interesse a festa de Corpus Christi ainda inspira no minguante contingente de católicos e nos demais brasileiros? Ao que parece, num feriadão destes, a maioria prefere petiscos e caipirinha em lugar de pão e vinho.
ALDO PEREIRA é ex-editorialista e colaborador especial da Folha de São Paulo.
E-mail: aldopereira.argumento@uol.com.br.

Maconha, além do tabu

Ronaldo Ramos Laranjeira e Ana Cecília Petta Roselli Marques

Já existem drogas lícitas que favorecem o uso das demais, não é preciso disponibilizar nenhuma outra; legalizar a maconha, nem pensar!

Vive-se há pelo menos dez anos no Brasil "duas ondas" perigosas: a do aumento do consumo de todas as drogas de abuso, principalmente em jovens adultos, e um forte debate para um abrandamento ainda maior das leis em relação à maconha. Como os atores são poucos, a solução para o aumento do consumo e o aprofundamento do debate não têm sucesso, pois não atingem todas as dimensões do fenômeno.
Os dois fatores podem agravar a situação, preceder o abrandamento para consumo de outras drogas e confundir ainda mais a população.
Depois disso, só mesmo a legalização, e aí o número de usuários vai aumentar, uma porcentagem significante deles se tornará usuário pesado e, para aumentar o número deles, muito será investido.
O debate é simplório e produz um glamour sobre o uso recreacional, seguindo a mesma metodologia da indústria do álcool, cuja comunicação ambivalente mostra que a cerveja não faz mal, é natural, basta usar moderadamente; além do mais, é medicinal.
Mais parece uma campanha de marketing com personalidades, passeatas, filmes e várias inserções na mídia, visando lançar mais um produto, mas que não é um produto qualquer e que pode, sim, trazer prejuízos.
De um lado, expandem-se apenas os direitos individuais, de outro, publica-se, por meio da neurociência, a imprevisibilidade dos efeitos dessas drogas, cujo impacto vai além do indivíduo, atingindo toda a sociedade, e questiona-se o direito da maioria da população de não usar drogas.
Os argumentos para que não se abrande ainda mais a lei das drogas e muito menos se almeje a legalização são muitos. O fenômeno das drogas é complexo, assim como a solução; portanto, as etapas para entender o fenômeno, atualizar-se sobre suas implicações e preparar a sociedade para mudar seus pensamentos e comportamentos ainda estão muito longe de acontecer.
Todas as drogas psicotrópicas alteram a capacidade de decidir; assim, os jovens, que já não possuem essa função mental plena, decidirão ainda menos preparados.
Já existem drogas lícitas que favorecem o uso das demais, não é preciso disponibilizar nenhuma outra. As complicações do uso são agudas e crônicas, com interfaces como a violência, a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada.
As doenças mentais e de comportamento, as doenças cardiovasculares, pulmonares, os cânceres, além das malformações congênitas, são frequentes.
Sem prevenção, sem tratamento adequado e disponível, diante da diversidade cultural do país, a política deveria ser desenhada para cada droga, para cada região.
Uma política para a maconha, que no Brasil já tem no mercado, há muito tempo, cigarros mesclados com cocaína, para produzir maior impacto no "freguês", deveria ser baseada em evidências e ter a mesma importância que as demais.
É preciso lembrar que a economia das drogas é uma das três maiores economias do planeta. Enfim, debater é preciso, de forma equilibrada e permanente, com todos os atores disponíveis: políticos, pesquisadores, o usuário e seus familiares, além de outros representantes da sociedade civil.
Fundamentalmente, com foco em um modelo de proteção para crianças e adolescentes brasileiros, pelo direito à prevenção de drogas; se o problema já estiver instalado, pelo direito a um bom tratamento.
Legalizar, nem pensar!
RONALDO RAMOS LARANJEIRA é professor titular de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Instituto Nacional de Políticas sobre Álcool e Drogas (Inpad/CNPq).
ANA CECILIA PETTA ROSELLI MARQUES, doutora pela Unifesp, é pesquisadora do Inpad/CNPq.

"Beautiful People"

Kenneth Maxwell

Há perigo em misturar sites e beleza, ao menos para aqueles que não são considerados bonitos por um site dedicado às pessoas belas.
O jornal "The Guardian" informou, nesta semana, que um site de encontros que se descrevia como de uso exclusivo para homens e mulheres bonitos havia impiedosamente excluído 30 mil pessoas que aderiram a ele como resultado de um vírus de computador, o qual teria adulterado o processo de seleção -que consiste em notas dadas pelos participantes aos novos candidatos a admissão, de acordo com sua aparência física.
Greg Hodge, diretor-executivo do site "Beautiful People", disse ao "Guardian" que muitas das pessoas inicialmente aceitas pelo site e depois excluídas "não eram dignas de um quadro".
Hodge comentou que "não se pode simplesmente varrer 30 mil pessoas feias para debaixo do tapete".
O site conta com 700 mil membros em todo o mundo.
Os membros classificam os novos candidatos de acordo com uma escala baseada no semáforo. Vermelho quer dizer "de jeito nenhum" e verde brilhante significa "bonita/o".
De acordo com o "Beautiful People", os homens irlandeses são os mais feios do mundo, com aceitação de apenas 9% dos inscritos. Das mulheres da Irlanda, somente 20% conseguiram ser aprovadas no processo seletivo.
Rússia, Polônia e Reino Unido também apresentam altos índices de rejeição. Os homens de mais sucesso são os da Suécia e do Brasil. As mulheres de mais sucesso são as da Noruega, da Suécia, da Islândia e do Brasil. Os homens de Portugal ficam em quinto lugar. As mulheres portuguesas não estão no ranking.
Mas Graham Cluley, consultor de tecnologia da Sophos, uma produtora de software antivírus e de segurança que conta com 200 milhões de usuários em 150 países, suspeita bastante das alegações do "Beautiful People" quanto à atividade de um vírus.
Ele diz que a ideia de que o chamado vírus "Shrek", que leva esse nome devido ao desenho animado cuja ideia central é a de que a aparência não importa, teria infectado o site lhe parece absolutamente inverídica. "Se a história do "Beautiful People" sobre o vírus Shrek é verdade, sou a cara do Brad Pitt." Cluley sugeriu que tudo não passa de um truque publicitário.
Difícil dizer. No entanto o site restituiu US$ 112 mil a 4,5 mil aspirantes a admissão que haviam pago sua taxa mensal de US$ 25, e agora estão apopléticos por terem sido rejeitados devido à feiura. Em última análise, o melhor é ser um homem brasileiro.
Ou uma mulher norueguesa ou sueca.
KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.

Tradução de PAULO MIGLIACCI
Do jornal Folha de São Paulo

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Poemas de um decifrador de mistérios









Investigador de sonhos e de emoções, Márcio Catunda, poeta-diplomata, abraça o mistério do verso na esperança de conseguir decifrar o enigma das sensações mais profundas porque mais humanas. Nele a metáfora do mar se transmuda em imenso poema de lirismo e de romantismo apesar da tragédia humana.

Leia http://files.nordestevinteum.com.br/FLIP/NE21/ne21.htmlmais em