quinta-feira, 23 de junho de 2022

ORAÇÃO POÉTICA PARA SÃO JOÃO DO CARNEIRINHO

                                                                            

 Barros Alves 

 

Desde pequeno devoto de São João,

O João batizador, estou bem certo, 
Que aquela voz clamando no deserto 
Merece reverência e contrição.
 

Maria, Virgem Mãe, pura e santíssima

Ao visitar Santa Isabel, a prima, 
Dedicou-lhe com divinal estima 
Uma oração majestosa e belíssima.
 

O Magnificat, angelical hino,

Entoado como doce oração, 
Inda no ventre o escutou São João 
Prenunciando ser um ser divino.
 

Isabel disse à Mãe Medianeira:

- “Quando o menino nascer verás sinal 
Que sairá daqui do meu quintal: 
A fumaça de eternal fogueira”.
 

E assim no dia da natividade

De São João, o fogo ardia tanto,
Parecendo ser do Espírito Santo
Trazendo ao mundo bela novidade.  
  

Nasceu, cresceu no deserto da Judéia,

Chamando o povo ao arrependimento,
A anunciar um majestoso evento, 
A chegada do Rabi da Galiléia. 
 

Um certo dia estava no Jordão

Pregando e batizando toda a gente, 
Quando lhe aparece, de repente, 
Para ser batizado por João 
 

O santo jovem Jesus de Nazaré.

Destarte, João, conforme estava escrito, 
No Jordão batizou o ser bendito
Que trouxe Bênção, Graça, Amor e Fé. 
 

João verberava contra a tirania

De Herodes, que ficou apavorado,  
Determinando que fosse condenado
Aquele que pregava com ousadia.
 

Herodes a temer a profecia

Determinou a decapitação,
Cortaram a cabeça de São João 
E entregaram ao rei numa bacia.
 

Aprendi com perfeita exatidão

Na Bíblia essa trágica história,
Porém, eu guardo mesmo na memória
É outro altivo e belo São João.
 

Entronizado está lá Matriz

De Cedro, espargindo bênção e luz.
Numa das mãos a segurar a cruz
E a outra a abençoar o infeliz.
 

A cruz do Agnus Dei é salvação,

Na outra mão em gesto tão bonito
 Meu São João aponta o infinito
 E nos convida à plena devoção.
 

A minha mãe devota me levava,

- A minha doce mãe, MEU AMORZINHO -,
Para adorar São João do Carneirinho... 
Junto ao santo o Cordeiro descansava.
 

E depois da oração simples, modesta,

Nós íamos folgar junto à fogueira,
Participar de tanta brincadeira...
Em noite de São João tem reza e festa.
 

Noites de festas e de santidade!

Peço, pois, a São João do Carneirinho 
Que onde estiver diga a MEU AMORZINHO 
Que por ela inda morro de saudade.

 



quarta-feira, 1 de junho de 2022

O JUIZ E A LITERATURA - Parte 4

                                                                        


Barros Alves

            A ninguém é dado desconhecer que o Judiciário brasileiro passa por uma crise moral nunca antes vista neste País (créditos para o mais beneficiado por essa crise, o ex-presidiário-mor). A militância ideológica de viés partidário adentrou nos mais altos escalões do Poder. Na Suprema Corte brasileira, as togas mudaram de cor e a tribuna jurisdicional transformou-se em palanque político permanente, conspurcando a sacralidade da Justiça. A solenidade e a discrição que devem ser dogmas no exercício do múnus judicante desceram pelo ralo. Egos inflamados de jactância e imodéstia fazem do Plenário augusto um ringue de disputas verbais e agressões desvestidas de quaisquer sem-cerimônias. As decisões de enfatuados e bem falantes ministros abandonaram os mais elementares conceitos do direito pregado nas Academias para arrimar-se em verdadeiros exercícios de vingança explícita. O que se tem visto às claras são decisões de ministros assentarem-se não no direito que produz a justiça, mas naquilo que Rudolf von Ihering dizia que o homem obrigava-se moralmente a lutar contra, ou seja, “contra o interesse mesquinho, a cupidez, a interpretação maliciosa, a prepotência e todas as formas que tendem, egoisticamente, ao sacrifício do direito alheio.”

Adoentada de um comodismo que depaupera e fragiliza o caráter, grande parcela de brasileiros não atentou ainda para o processo de deterioração do direito entre nós, e por ele não tem lutado, consoante o ensinamento de Ihering. Postado numa atitude de covardia, vê a toga envolvida pela política partidária e, consequentemente, pelo escárnio da populaça ignara, mas sem a ação concreta de legítimas lideranças que arrostem obstáculos interpostos para a consecução da justiça, por aqueles que dela necessitam. Vêem a banda dos togados passar cantando hinos autoritários à moda nazista e apontam o dedo para o lado oposto. Estamos em um momento parecido ao que precedeu o Terceiro Reich, onde o Direito se confundiu com a suástica. Mutatis mutandis, no Brasil dos aziagos dias hodiernos, - não digo o Direito na sua expressão pura -, mas decisões jurisprudenciais adotadas pela Suprema Corte estão a se confundir com a foice e o martelo, que no seu viés autoritário é irmão siamês da suástica. Vale o grito de alerta do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que ao seu tempo sofreu perseguição dos dois lados:

 

“Nós vos pedimos com insistência:

Nunca digam: - Isso é natural!

Diante dos acontecimentos de cada dia,

Numa época em que corre o sangue,

Em que o arbitrário tem força de lei,

Em que a humanidade se desumaniza,

Não digam nunca: - Isso é natural!    

A fim de que nada passe por imutável...

 

A professora Fabiana Marion Spengler ao discorrer sobre símbolo, mito e rito na seara da magistratura, lembra que “o juiz é visto como um ser diferenciado, possuidor de uma autoridade incontrastável, cheia de poderes. Essa figura mitológica se faz reconhecer por seus símbolos (a toga, o martelo, o prédio da Justiça, entre outros)”. Entre nós, além do martelo, o magistrado já empunha a foice de forma escandalosa. Ao que parece nesse Brasil em que vivemos não há grande preocupação com o direito e, consequentemente, muito menos com a justiça. Talvez tenha sido esse o mesmo sentimento que acometeu o gênio de Shakespeare quando ele escreveu o “Rei Lear”, sobretudo quando dramatiza: “Mesmo sem olhos o homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele humilde criminoso. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o criminoso? Já viste um cão da roça ladrar pra um miserável? (...) e o pobre diabo correr do vira-lata? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. (...) Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa.” Vemos a toga brasileira nesse texto shakespeareano. Crimes cobertos com placas de ouro por quem em vez de fazer justiça, tem quebrado a lança de Thêmis. E repetimos com Shakespeare: “Até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo...”

                                                                        


Barros Alves

             Poucas pessoas sabem que lei e norma são coisas diferentes. Esta advém daquela e resulta de um processo de interpretação feita pelo julgador daquilo que foi positivado no ordenamento escrito pelos nossos representantes nas Casas Legislativas. Ou seja, de fato, nem sempre a norma que emana da lei reflete o espírito do legislador ou a idéia geradora daquele diploma legal, que o juiz com seus malabarismos hermenêuticos empresta à letra da lei. No Brasil atual temos visto abusivas distorções hermenêuticas até da Suprema Corte, que em incompreensíveis exercícios hermenêuticos tem desmoralizado a segurança jurídica, imprescindível ao cidadão numa democracia. Caso exemplar é o da prisão do réu após o julgamento em segunda instância. Os magistrados do STF em um determinado momento acharam e justificaram que tal não deveria ocorrer, pois a Constituição não permite. Pouco tempo depois modificaram essa jurisprudência argumentando que a justiça deve ser feita com fundamento na ética em favor da sociedade, insistentemente vítima de corruptos e ladrões dos dinheiros públicos. E toda a argumentação foi formulada em cima da Constituição, dizendo eles que a Carta Cidadã é principiológica. Porém, em menos tempo ainda, estabeleceram nova jurisprudência, também arrimada na Constituição, remetendo os julgamentos à obediência à letra da Lex Magna, segundo a qual ninguém pode ser preso senão depois do processo ter transitado em julgado; ou seja, depois da palavra final de um semideus do Judiciário, e não havendo mais lugar para recurso. Dezenas de exemplos poderiam ser apresentados sobre essas idas e vindas da jurisprudência brasileira.

Lei e jurisprudência são elaboradas por homens cheios de defeitos e idiossincrasias, homens passíveis de falhas, de caráter inclusive. Então, apesar de alguns, em especial aqueles que estão no topo da pirâmide do Judiciário, se acharem acima dos mortais, só a ingênuos, crédulos ou cúmplices é dado acreditar que não são cometidos erros clamorosos em inúmeros processos judiciais, alguns até praticados de forma proposital por juízes comprometidos com tudo, menos com a Justiça. Uma observação sábia e pertinente fez o respeitável jurista Piero Calamandrei em obra clássica intitulada “Eles, os juízes, vistos por um advogado”. Eis o que escreveu o mestre italiano: “Não adianta dizer, como se ouve repetir com demasiado simplismo, que a função dos magistrados é aplicar a lei e que, portanto, se mudança de regime significa mudança de leis, o ofício dos magistrados permanece sempre o mesmo, resumido no dever de serem fiéis às leis em vigor. Quem assim raciocina não quer perceber que as leis são fórmulas vazias, que o juiz cada vez preenche não só com sua lógica, mas também com seu sentimento. Antes de aplicar uma lei, o juiz como homem, é levado a julgá-la; conforme sua consciência moral e sua opinião política a aprovem ou reprovem, ele aplicará com maior ou menor convicção, isto é, com maior ou menor fidelidade. A interpretação das leis deixa ao juiz certa margem de opção; dentro dessa margem, quem comanda não é a lei inexorável, mas o coração mutável do juiz.” Vê-se com clareza que no Brasil atual há ministros da Suprema Corte que alargaram tão irresponsavelmente essa margem de que fala Calamandrei, que extravasaram sua competência constitucional, invadindo a competência dos demais poderes, sobretudo a do Poder Executivo.

Lembrando as referências que nossa literatura faz aos juízes, explicitando a visão dos escritores e a visão que eles imaginam ter as pessoas dos magistrados, por agora transcrevo excerto do romance “A Luneta Mágica”, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). Este clássico da literatura brasileira demonstra que não apenas o despreparo, a corrupção, as indevidas ingerências da politicagem, mas a própria condição humana seria em grande medida avessa à Justiça como um valor inalienável. Eis o dilema de personagem da obra em tela, depois de presenciar um ambiente de inocentes condenados: “Voltava para casa dominado por pensamentos perigosos e revolucionários, e desejoso de uma profunda transformação social, que acabasse com os algozes e salvasse as vítimas; mas, de súbito, parei: a casualidade me mostrava um grupo de cinco homens, conversando alegremente na rua, onde acabavam de encontrar-se; conheci a todos cinco: três eram desembargadores, e dois eram juízes de direito, portanto, presidentes de júri; simples aplicadores da lei, ou fiscalizadores das nulidades, e das regras legais dos processos, eram contudo magistrados, e tendo contribuído para a condenação e tormento de tantos inocentes, os monstros ainda podiam conversar com alegria! Fitei sobre eles a luneta mágica, estudando-os um por um para inteirar-me de todos os instintos ferozes ocultos em seus corações de tigres...”  Que diria Joaquim Manuel de Macedo se apontasse a sua luneta mágica para os ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal no Brasil dos dias atuais? 

 

O JUIZ E A LITERATURA – Parte 2

                                                                   


   

Barros Alves

Jáder de Carvalho, de quem tive a honra de privar da amizade, foi advogado militante, além de jornalista, sociólogo, poeta, romancista e panfletário, exercitando todos os seus dons com descortino, altivez e, sobretudo, coragem. Usou os conhecimentos jurídicos e do mundo em que pontificam os togados, aliando-os ao reconhecido talento literário, para criticar acerbamente os descaminhos da magistratura no Ceará. Escreveu obra basilar neste aspecto da crítica social, o romance “Sua Majestade, o Juiz”, que se tornou um dos clássicos não apenas de sua multifacetada e respeitável obra de ficcionista, mas da literatura cearense, formando juntamente com o demolidor romance “Aldeota”, uma dupla bibliográfica de notável valor estético e crítico, na ficção até hoje produzida por escritor cearense. Jáder, como lembra seu filho Cid Carvalho, também ele jornalista e escritor, foi “um causídico combativo, teve sua profissão e sua vida marcadas pelos choques com juízes e desembargadores”, o que se reflete nas personagens de sua obra ficcional.

“Sua Majestade, o Juiz” é um livro polêmico, cujo protagonista, o magistrado Dr. José de Sampaio Nogueira, exercita a magistratura subordinado às circunstâncias ditadas pelo poder político, agindo até de forma pusilânime. “Não sou o juiz venal?”(...) “Se como magistrado me tornei pusilânime...” E tantas outras considerações de auto-imolação moral da personagem, dão bem uma idéia da ousadia do romancista, que publicou a obra em outros tempos de descaminhos do Poder Judiciário, os quais, no entanto, parecem tão atuais.

Recolho apenas um excerto desse romance que expressa uma crítica contundente e deixa à mostra a realidade das hipocrisias que se guardam debaixo das togas. Transcrevo: “Em Fortaleza, tremia subterraneamente o chão da magistratura. Entre juízes do interior descobriram dois casos de pederastia passiva. Denúncias verazes haviam chegado às mãos do presidente da Corte. Um dos magistrados – segundo a denúncia – chegara a amigar-se com um marinheiro da Capitania dos Portos. O outro deixara-se apanhar em flagrante quando servia de mulher para o cabo do destacamento. Escandalizados e humilhados os desembargadores reuniram-se em sessão secreta. Um dos venerando membros da Corte apresentou a solução:

- Esses juízes precisam, e com urgência, de ser removidos. Não podemos ficar sujeitos à maledicência popular. Crato não está vaga? Icó também não vagou?

A Corte, por maioria de votos, aceitou a proposta da remoção. Mas, veio – e não poderia deixar de vir – o estalo na cabeça do desembargador presidente:

- Colegas o assunto já saiu da pauta. Tomamos o caminho que julgamos certo, ou seja a remoção. Mas, teremos mesmo solucionado o melindroso caso? Eu próprio respondo: não!

- Por quê, ilustre presidente? – perguntou um dos desembargadores.

Entre malicioso e pudico, o presidente explanou o seu ponto-de-vista:

- Por esta razão muito simples: eles “davam” certa coisa nas suas respectivas comarcas. Não “davam”?

Alguns dos presentes esboçaram ligeiro sorriso. Um deles afirmou:

- Davam, não resta a menor dúvida. Não ouvimos testemunhas idôneas?

O presidente prosseguiu:

- Eles, removidos para outras comarcas, não levarão consigo essas coisas que eles davam?

- Claro, claro – falou um dos magistrados reunidos.

Então o presidente concluiu:

- Nesse caso não adianta removê-los. Eles continuarão “dando”, pois o feio vício, segundo ouvi, num deles vem dos tempos colegiais e no outro é mal de família. Logo, o remédio é afastá-los definitivamente da Magistratura. Quem sabe se, envergonhados, não se corrigirão?

- Não acredito, não acredito, se é como V. Exa. informou. O remédio é mesmo a avulsão.”

Como se vê pela ficção de Jáder de Carvalho, profundo conhecedor desse universo de togas, as majestades Bocas de Veludo não abandonarão o vício de “dar a coisa”, quer estejam numa comarca do interior do Ceará ou na Suprema Corte do País.