Barros
Alves
Jáder de Carvalho, de quem tive a honra
de privar da amizade, foi advogado militante, além de jornalista, sociólogo, poeta,
romancista e panfletário, exercitando todos os seus dons com descortino,
altivez e, sobretudo, coragem. Usou os conhecimentos jurídicos e do mundo em
que pontificam os togados, aliando-os ao reconhecido talento literário, para
criticar acerbamente os descaminhos da magistratura no Ceará. Escreveu obra
basilar neste aspecto da crítica social, o romance “Sua Majestade, o Juiz”, que
se tornou um dos clássicos não apenas de sua multifacetada e respeitável obra de
ficcionista, mas da literatura cearense, formando juntamente com o demolidor
romance “Aldeota”, uma dupla bibliográfica de notável valor estético e crítico,
na ficção até hoje produzida por escritor cearense. Jáder, como lembra seu
filho Cid Carvalho, também ele jornalista e escritor, foi “um causídico
combativo, teve sua profissão e sua vida marcadas pelos choques com juízes e
desembargadores”, o que se reflete nas personagens de sua obra ficcional.
“Sua Majestade, o Juiz” é um livro
polêmico, cujo protagonista, o magistrado Dr. José de Sampaio Nogueira, exercita
a magistratura subordinado às circunstâncias ditadas pelo poder político,
agindo até de forma pusilânime. “Não sou o juiz venal?”(...) “Se como
magistrado me tornei pusilânime...” E tantas outras considerações de auto-imolação
moral da personagem, dão bem uma idéia da ousadia do romancista, que publicou a
obra em outros tempos de descaminhos do Poder Judiciário, os quais, no entanto,
parecem tão atuais.
Recolho apenas um excerto desse romance
que expressa uma crítica contundente e deixa à mostra a realidade das
hipocrisias que se guardam debaixo das togas. Transcrevo: “Em Fortaleza, tremia
subterraneamente o chão da magistratura. Entre juízes do interior descobriram
dois casos de pederastia passiva. Denúncias verazes haviam chegado às mãos do
presidente da Corte. Um dos magistrados – segundo a denúncia – chegara a amigar-se
com um marinheiro da Capitania dos Portos. O outro deixara-se apanhar em
flagrante quando servia de mulher para o cabo do destacamento. Escandalizados e
humilhados os desembargadores reuniram-se em sessão secreta. Um dos venerando
membros da Corte apresentou a solução:
- Esses juízes precisam, e com urgência,
de ser removidos. Não podemos ficar sujeitos à maledicência popular. Crato não
está vaga? Icó também não vagou?
A Corte, por maioria de votos, aceitou a
proposta da remoção. Mas, veio – e não poderia deixar de vir – o estalo na
cabeça do desembargador presidente:
- Colegas o assunto já saiu da pauta.
Tomamos o caminho que julgamos certo, ou seja a remoção. Mas, teremos mesmo
solucionado o melindroso caso? Eu próprio respondo: não!
- Por quê, ilustre presidente? –
perguntou um dos desembargadores.
Entre malicioso e pudico, o presidente
explanou o seu ponto-de-vista:
- Por esta razão muito simples: eles
“davam” certa coisa nas suas respectivas comarcas. Não “davam”?
Alguns dos presentes esboçaram ligeiro
sorriso. Um deles afirmou:
- Davam, não resta a menor dúvida. Não
ouvimos testemunhas idôneas?
O presidente prosseguiu:
- Eles, removidos para outras comarcas,
não levarão consigo essas coisas que eles davam?
- Claro, claro – falou um dos
magistrados reunidos.
Então o presidente concluiu:
- Nesse caso não adianta removê-los.
Eles continuarão “dando”, pois o feio vício, segundo ouvi, num deles vem dos
tempos colegiais e no outro é mal de família. Logo, o remédio é afastá-los
definitivamente da Magistratura. Quem sabe se, envergonhados, não se
corrigirão?
- Não acredito, não acredito, se é como
V. Exa. informou. O remédio é mesmo a avulsão.”
Como se vê pela ficção de Jáder de
Carvalho, profundo conhecedor desse universo de togas, as majestades Bocas de
Veludo não abandonarão o vício de “dar a coisa”, quer estejam numa comarca do
interior do Ceará ou na Suprema Corte do País.