quarta-feira, 1 de junho de 2022

O JUIZ E A LITERATURA – Parte 2

                                                                   


   

Barros Alves

Jáder de Carvalho, de quem tive a honra de privar da amizade, foi advogado militante, além de jornalista, sociólogo, poeta, romancista e panfletário, exercitando todos os seus dons com descortino, altivez e, sobretudo, coragem. Usou os conhecimentos jurídicos e do mundo em que pontificam os togados, aliando-os ao reconhecido talento literário, para criticar acerbamente os descaminhos da magistratura no Ceará. Escreveu obra basilar neste aspecto da crítica social, o romance “Sua Majestade, o Juiz”, que se tornou um dos clássicos não apenas de sua multifacetada e respeitável obra de ficcionista, mas da literatura cearense, formando juntamente com o demolidor romance “Aldeota”, uma dupla bibliográfica de notável valor estético e crítico, na ficção até hoje produzida por escritor cearense. Jáder, como lembra seu filho Cid Carvalho, também ele jornalista e escritor, foi “um causídico combativo, teve sua profissão e sua vida marcadas pelos choques com juízes e desembargadores”, o que se reflete nas personagens de sua obra ficcional.

“Sua Majestade, o Juiz” é um livro polêmico, cujo protagonista, o magistrado Dr. José de Sampaio Nogueira, exercita a magistratura subordinado às circunstâncias ditadas pelo poder político, agindo até de forma pusilânime. “Não sou o juiz venal?”(...) “Se como magistrado me tornei pusilânime...” E tantas outras considerações de auto-imolação moral da personagem, dão bem uma idéia da ousadia do romancista, que publicou a obra em outros tempos de descaminhos do Poder Judiciário, os quais, no entanto, parecem tão atuais.

Recolho apenas um excerto desse romance que expressa uma crítica contundente e deixa à mostra a realidade das hipocrisias que se guardam debaixo das togas. Transcrevo: “Em Fortaleza, tremia subterraneamente o chão da magistratura. Entre juízes do interior descobriram dois casos de pederastia passiva. Denúncias verazes haviam chegado às mãos do presidente da Corte. Um dos magistrados – segundo a denúncia – chegara a amigar-se com um marinheiro da Capitania dos Portos. O outro deixara-se apanhar em flagrante quando servia de mulher para o cabo do destacamento. Escandalizados e humilhados os desembargadores reuniram-se em sessão secreta. Um dos venerando membros da Corte apresentou a solução:

- Esses juízes precisam, e com urgência, de ser removidos. Não podemos ficar sujeitos à maledicência popular. Crato não está vaga? Icó também não vagou?

A Corte, por maioria de votos, aceitou a proposta da remoção. Mas, veio – e não poderia deixar de vir – o estalo na cabeça do desembargador presidente:

- Colegas o assunto já saiu da pauta. Tomamos o caminho que julgamos certo, ou seja a remoção. Mas, teremos mesmo solucionado o melindroso caso? Eu próprio respondo: não!

- Por quê, ilustre presidente? – perguntou um dos desembargadores.

Entre malicioso e pudico, o presidente explanou o seu ponto-de-vista:

- Por esta razão muito simples: eles “davam” certa coisa nas suas respectivas comarcas. Não “davam”?

Alguns dos presentes esboçaram ligeiro sorriso. Um deles afirmou:

- Davam, não resta a menor dúvida. Não ouvimos testemunhas idôneas?

O presidente prosseguiu:

- Eles, removidos para outras comarcas, não levarão consigo essas coisas que eles davam?

- Claro, claro – falou um dos magistrados reunidos.

Então o presidente concluiu:

- Nesse caso não adianta removê-los. Eles continuarão “dando”, pois o feio vício, segundo ouvi, num deles vem dos tempos colegiais e no outro é mal de família. Logo, o remédio é afastá-los definitivamente da Magistratura. Quem sabe se, envergonhados, não se corrigirão?

- Não acredito, não acredito, se é como V. Exa. informou. O remédio é mesmo a avulsão.”

Como se vê pela ficção de Jáder de Carvalho, profundo conhecedor desse universo de togas, as majestades Bocas de Veludo não abandonarão o vício de “dar a coisa”, quer estejam numa comarca do interior do Ceará ou na Suprema Corte do País.    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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