segunda-feira, 28 de novembro de 2011

EM LOUVOR DE MONSENHOR XIMENES


“Combati o bom combate, encerrei a carreira e guardei a fé”. A constatação paulina ditada no no ocaso da vida do grande militante do Cristianismo primitivo, aplica-se plenamente ao Monsenhor Luís Ximenes Freire, incansável pregador do Reino de Deus nos sertões adustos de Santa Quitéria e adjacências crestadas pelo sol inclemente do semi-árido, a temperar o caráter do sertanejo com a tenacidade que faz dele antes de tudo um forte, no dizer irretorquível de Euclides da Cunha, o criador d’“Os Sertões”, Bíblia do romance histórico brasileiro.
O Monsenhor Ximenes, assim designado por decisão vaticana, em justa homenagem ao apóstolo que dedicou toda a vida à Igreja, sobraçou outra Bíblia, a verdadeira. Aquela que contém a Revelação de Deus aos homens, o Livro fundador de tantas religiões e heresias, mas que sedimenta os fundamentos da Igreja fundada por Jesus Cristo, a Católica Apóstolica Romana, guardiã insofismável da doutrina que nos foi legada pelo Filho de Deus e nos foi transmitida pelos santos apóstolos e seus sucessores, os bispos, sob a orientação mor do Bispo de Roma, o Sumo Pontífice que se assenta na cátedra de São Pedro e da Cidade Eterna comanda os destinos do povo cristão católico em toda a Terra.
Era nisto que o Monsenhor Ximenes acreditava e cuja bandeira – in hoc signo vinces – defendeu até a morte. Fiel à Igreja, fiel às decisões episcopais, fiel às decisões mudancistas do Concílio Vaticano II. No entanto, paradoxalmente, sua formação conservadora jamais permitiu que determinados costumes mudanosos ou influências deletérias provindas de outras religiões ou seitas adentrassem no átrio do seu templo genuinamente católico, que permaneceu com um certo cheiro das flores doutrinárias desabrochadas em Trento. Sua paróquia era um repositório de exemplos de retilineidade na ação e na doutrina, porque o seu titular era o exemplo maior de dignidade eclesiástica, de virtude teologal, de respeito sacramental aos valores históricos e imorredouros da Santa Madre Igreja, em seu insuperável legado bebido na Palavra e na Tradição e oferecido pela gratuidade de seu fundador, Jesus Cristo, aos fiéis de todos os tempos em todos os lugares do mundo onde o Filho de Deus se faz presente na Sagrada Eucaristia.
Pastor na mais profunda acepção que o sentido bíblico pode conceder à palavra, o Monsenhor Ximenes, na visão de seus contemporâneos foi um homem sem jaça, uma figura ímpar pelo desprendimento com que vivia o cotidiano de labores, entregando a todos não apenas a palavra de conforto, o conselho espiritual, o gesto paternal, mas até mesmo os bens materiais que proventura lhe chegassem às mãos como um óbolo à Igreja oferecido por aquelas ovelhas financeiramente melhor aquinhoadas. São inúmeros os depoimentos de quantos o viram receber com uma mão e passar adiante com a outra, as ofertas que lhe eram oferecidas pessoalmente como gratidão de tantos que viam nele o bom pastor que ia além da missão sacerdotal, porque a todos acolhia sem acepção de pessoas e a todos entregava valiosa porção de sua esperança, de sua fé e, sobretudo, de seu amor.
A vida pessoal do Monsenhor Ximenes é marcada por simplicidade franciscana e por um sentido raro de desprendimento. Basta lembrar, conforme depoimento de várias pessoas, que ele foi sondado para receber o anel episcopal,mas tal honraria eclesiástica era algo que não lhe apetecia, porque totalmente desvinculado de qualquer tipo de poder, até mesmo este que lhe conferia sagração da Igreja e reconhecimento público de suas qualidades pastorais. Como Santo Onofre ele viu na oferta um caminho para um certo orgulho interior e vislumbrou a visita do pecado através de um ato que para a maioria apresenta-se como uma coroa de glórias eternas. Diplomaticamente recusou a oferta que lhe veio do Vaticano. Diz-se que concretamente a recusa deveu-se a mais dois motivos, os quais se somaram ao seu conhecido desprendimento: o primeiro o fato inequívoco de não querer abandonar sua querida paróquia e povo de Santa Quitéria que se tornou para ele tesouro e galardão. O segundo motivo teria sido o medo de que sua queridíssima genitora, Dona Maria Ximenes, a Dona Marica, viesse a se encher de orgulho e vaidade pela ascensão do filho humilde à cadeira episcopal, ensejando, destarte, motivo suficiente para que virasse presa fácil das artimanhas de Lúcifer. Repito que neste pé ninguém mais se assemelha a Santo Onofre do que o Monsenhor Ximenes. Aliás, o eremita Onofre, segundo a narrativa romanceada de Eça de Queirós, chegou a ser punido por Deus pelo fato de se ter envaidecido pelo grandioso amor que dedicava ele próprio ao Criador. Que paradoxalidade e que mistério divino!!!
O Monsenhor Ximenes não nasceu em Santa Quitéria, mas em Camocim, à beira do mar, a ouvir o marulho das ondas de par com o apito do trem e lamento onomatopéico da Maria Fumaça, uma das quais funcionava sob responsabilidade de seu pai. Os sons marinhos nem a visão grandiosa do mar sagrado permaneceram no inconsciente do pregador. Todavia, a dorida cantilena da Maria Fumaça penetrou na alma e no coração do poeta que se fez padre e o acompanhou por toda a sua vida, ficando incrustada com o ferrete da inspiração na nostálgica obra poética do Apóstolo de Santa Quitéria. Ironia do destino: durante 41 anos o Monsenhor Ximenes foi vigário da paróquia de Santa Quitéria, onde não há via férrea e, portanto, onde é impossivel ouvir o apito do trem. Só mesmo o eco que veio dos confins da alma infantil do poeta é que proporcionou a ele a proeza de cantar com maestria e vigor literário as analogias e metáforas que têm o trem como protagonista e, sobretudo, a Maria Fumaça a quem ele dedicou um livro.
Nasceu em 5 de novembro de 1925, passou a infância entre trens e trilhos, uma vez que seu pai, Raimundo Ximenes Freire era maquinista e deixou ao filho um legado transcendental: a paixão ferroviária. Maria Ximenes, a mão dele, incrustou-lhe na alma o cabedal de fé que foi a única riqueza do padre-poeta. Ainda em tenra idade despertou para o sacerdócio e foi estudar no Seminário Menor de Sobral, onde permaneceu de 1940 a 1946, transferindo-se como de costume, para o Seminário da Prainha para cursar as Humanidades, Filosofia e Teologia. Ali esteve até o ano 1952, ano em que ordenou-se, aos 30 de novembro de 1952, em Sobral, pela imposição das mãos do Bispo Dom José Tupinambá da Frota. A primeira missa foi celebrada festivamente aos 3 de dezembro do mesmo ano, em Crateús. Designado para pastorear o rebanho de Santa Quitéria, tomou posse em 5 de janeiro 1953, onde permaneceu até a morte em 4 de outubro de 1994, dia em que o Senhor o chamou para pastorear as estrelas no Céu.
A inspiração que lhe fez cultuar as Musas ditou-lhe poemas, especialmente sonetos, da melhor lavra, quase senão todos arrimados na temática do trem. Escreveu também textos em prosa, sempre suavemente adoçados com a linguagem metafórica do poeta e temperados tantas vezes com o humorismo sadio provindo de uma constante alegria pastoral. Enfeixou-os em livros: “Sobral: Igreja Hoje” (1971); “Sobral na Madrugada da Diocese” (1972); “Paixão Ferroviária” (1984); “O Trem, meu velho amigo” (1986); “Sua Alteza Maria Fumaça” (1987); “Sonetos do Trem Partido” (1988); “Liturgia dos Trens” (1989).
Em 2003 chego a Santa Quitéria de morada. E o calor da gente do lugar, a acolhedora cidade que guarda imensa devoção à santa-mártir portuguesa, já me leva ao santuário católico para a celebração memorial comemorativa do cinquentenário de ordenação sacerdotal (in memoriam) do Monsenhor Luís Ximenes, um dos ícones daquela terra encravada nos sertões adustos e que foi por ele cantada em prosa e verso, como o fez movido por ímpar inspiração com os seus inseparáveis trens.
No templo, a oração do sacerdote pede aos fiéis a preservação do exemplo de humildade e serviço praticado ao longo da vida pelo santo prelado. Ao redor do pequeno museu (um vagão de trem adaptado) que guarda a memória do padre-poeta, localizado no Largo que leva o nome do homenageado, os oradores se revezam na exaltação das qualidades eclesiásticas do vigário, em cuja personalidade altearam-se virtudes verdadeiramente cristãs, sem olvidarem o humanismo telúrico que permeou as ações do homem sertanejo e invadiu os escaninhos da obra literária, sobretudo da poesia que escreveu com um coração cheio de saudades e da solidão que povoou as elucubrações do pregador.
Tendo sido um pastor de almas arrimado nos ensinamentos neotestamentários, segundo o testemunho fidedigno de tantos que o conheceram e privaram de sua amizade, o Monsenhor Luís Ximenes foi sobretudo um poeta, aquele que canta e encanta o mundo por meio da palavra elaborada e sonorosa. Poeta do sonho, poeta do amor, poeta da fé, que fazia do trem o objeto primeiro de seu devaneio, das suas saudades e das suas esperanças, assentadas numa meninice onde as marias-fumaças evocavam no apitar plangente os dias idos e os por virem, nunca magoados, mas sempre grávidos de esperanças. É este casamento entre saudade e esperança o combustível que move o trem poético do Monsenhor Luís Ximenes nos trilhos da caminhada humana em direção das estações do futuro.
No microcosmo quiteriense o padre-poeta (ou seria poeta-padre?) espargiu sua canção de amor e telurismo por onde quer que foram aportar a sua escritura literária e a sua poesia ferroviária, em que a recordação se faz intensa e necessária para a explicação do sentimentos do mundo, através de imagens e símbolos ligados à ferrovia. A fixação do poeta pelos trens e afins é algo que requer uma análise freudiana, com recorrência nas vivências da infância. Seu pai era um ferroviário. Seus primeiros brinquedos foram vagõezinhos de trem, seus primeiros passeios ocorreram sobre trilhos. Certamente, por isto ficou eternamente marcado pelos trens e a locomotiva do seu viver e do seu estro trilhou caminhos poéticos cantando os sonhares, angústias, alegrias e desilusões, carregando comboios diversos que enchem a alma dos que têm a ventura de ler os seus livros. Na poesia do Monsenhor Ximenes os trens criam personalidade, expressam sentimentos, têm voz e vida.
Porém, a grande ironia de tudo isto reside no fato de que Deus (Maktub!!!) designou o Poeta do Trem para pregar a um povo sem ferrovia. E ele sem perder o afã cumpriu a missão com fervor apostólico, procurando colocar nos trilhos do Cristianismo as mentalidades recalcitrantes. O povo de Santa Quitéria o ama com devoção. A reverência à memória do padre-poeta se faz sentir na fala e nos gestos dos queiterienses.
A memória dele está preservada e o exemplo que escreveu no coração do povo deve ser seguida pelas pósteras gerações como sinônimo de vocação para servir e expressão de uma vida feita de caridade e beleza poética.