sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

VIEIRA E OS LADRÕES





  Barros Alves

Por primeiro devo dizer que o Vieira a que se refere este artigo não é o ladrão baiano de prenome Gedel, preposto de S. Exa. o presidente da República. O de que tratamos é o Padre Antônio Vieira, glória excelsa da oratória sacra em língua portuguesa, cuja genialidade retórica está exposta nos famosos “Sermões”. Em vários desses discursos teológico-pastorais o jesuíta condena o mau costume de alguns que apreciam apoderar-se do alheio, costume este muito mais condenável quando o protagonista ou coadjuvante exerce cargo público. Para essa escória moral da sociedade parece não haver cura. Só há um remédio: pena rigorosa e irrecorrível. Para Vieira, nesses casos de roubo da coisa pública, as benéficas interpretações da lei não passam de subterfúgios de quem se acumplicia ou deseja apaziguar um feito por todos os modos reprovável e certamente repetível em face da impunidade. A exclamação procede: “Oh, como o inferno está cheio dos que com estas e outras interpretações, por adularem os grandes e os supremos, não reparam em os condenar!”. E o acréscimo é mais incisivo: “Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se abateu a tais vilezas, perdeu todos os foros.” Discorrendo sobre o roubo do fruto proibido no Éden, o hermeneuta não poupa Adão para dar exemplo a seus descendentes neste vale de lágrimas: “Ainda que haja de viver novecentos anos [igualmente Adão], e houvesse de viver nove mil, uma vez que roubou e é conhecido por ladrão, nunca mais deve ser restituído, nem há de entrar no mesmo posto.”
 Também a Vieira credita-se a autoria do clássico “A Arte de Furtar”, subtitulado “espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos reinos de Portugal”. Obra que veio à lume em 1652, trata-se de crítica voraz aos que metiam os pés pelas mãos ao tempo do reinado de Dom João IV. Tanto quanto “A Arte de Furtar”, atualíssimas para o Brasil de hoje são as verberações do “Sermão do Bom Ladrão”, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Vieira, porém, manifesta o desejo de havê-lo verbalizado na Capela Real para auditório mais consentâneo com as admoestações do corajoso pregador. Excelente também em virtudes cristãs, Vieira logo alteia o verbo afirmando que “nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis.” Esgrimindo dialética exemplar e rica teologia, com arrimo nas Sagradas Escrituras, em que assoma o texto base da narrativa da crucificação do Cristo entre dois ladrões (Evangelho segundo Lucas, cap. 23. Vers. 42ss), eis que o insuperável tribuno condena a ladroagem sobre todos os aspectos, sem conceder ao ato de roubar nenhuma comiseração, posto ser mais certo que “em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.” Pleno conhecedor do texto bíblico, vai Vieira expondo sua tese assentada na imprescindível devolução do furto. Todavia, segundo o pregador, a obrigatória restituição do bem roubado ao dono, não implica em comutação da pena, posto que o dano já está concretizado. Em especial se o patrimônio surrupiado pertence ao haveres do Estado. Ladrões da coisa pública são mais perigosos e pecam mais gravemente, posto que “ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores.”
Quanta semelhança há entre os príncipes e ladrões do discurso de Vieira e os governantes, sejam lulocomunopetistas ou golpistas que infelicitam o malsinado viver dos brasileiros: “Há príncipes que correm com os ladrões e concorrem com eles. Correm com eles, porque os admitem à sua familiaridade e graça, e concorrem com eles, porque, dando-lhes autoridade e jurisdições, concorrem para o que eles furtam.”. E citando São Basílio Magno: “os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos.” Oh, desgraçado mundo! Oh, mais desgraçado Brasil! Assim foi no Portugal dos tempos de Vieira, assim continua sendo nesta Terra de Santa Cruz dos dias hodiernos. Hoje como ontem, aqui como lá “o verbo roubar se conjuga de todos os modos.”