Barros
Alves
Por primeiro
devo dizer que o Vieira a que se refere este artigo não é o ladrão baiano de prenome Gedel,
preposto de S. Exa. o presidente da República. O de que tratamos é o Padre
Antônio Vieira, glória excelsa da oratória sacra em língua portuguesa, cuja genialidade
retórica está exposta nos famosos “Sermões”. Em vários desses discursos
teológico-pastorais o jesuíta condena o mau costume de alguns que apreciam
apoderar-se do alheio, costume este muito mais condenável quando o protagonista
ou coadjuvante exerce cargo público. Para essa escória moral da sociedade
parece não haver cura. Só há um remédio: pena rigorosa e irrecorrível. Para
Vieira, nesses casos de roubo da coisa pública, as benéficas interpretações da
lei não passam de subterfúgios de quem se acumplicia ou deseja apaziguar um feito
por todos os modos reprovável e certamente repetível em face da impunidade. A exclamação procede: “Oh,
como o inferno está cheio dos que com estas e outras interpretações, por
adularem os grandes e os supremos, não reparam em os condenar!”. E o acréscimo
é mais incisivo: “Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se
abateu a tais vilezas, perdeu todos os foros.” Discorrendo sobre o roubo do
fruto proibido no Éden, o hermeneuta não poupa Adão para dar exemplo a seus
descendentes neste vale de lágrimas: “Ainda que haja de viver novecentos anos [igualmente
Adão], e houvesse de viver nove mil, uma vez que roubou e é conhecido por
ladrão, nunca mais deve ser restituído, nem há de entrar no mesmo posto.”
Também a Vieira credita-se a autoria do
clássico “A Arte de Furtar”, subtitulado “espelho de enganos, teatro de verdades,
mostrador de horas minguadas, gazua geral dos reinos de Portugal”. Obra que
veio à lume em 1652, trata-se de crítica voraz aos que metiam os pés pelas mãos
ao tempo do reinado de Dom João IV. Tanto quanto “A Arte de Furtar”,
atualíssimas para o Brasil de hoje são as verberações do “Sermão do Bom Ladrão”,
pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Vieira, porém, manifesta
o desejo de havê-lo verbalizado na Capela Real para auditório mais consentâneo
com as admoestações do corajoso pregador. Excelente também em virtudes cristãs,
Vieira logo alteia o verbo afirmando que “nem os reis podem ir ao paraíso sem
levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo
os reis.” Esgrimindo dialética exemplar e rica teologia, com arrimo nas
Sagradas Escrituras, em que assoma o texto base da narrativa da crucificação do
Cristo entre dois ladrões (Evangelho segundo Lucas, cap. 23. Vers. 42ss), eis
que o insuperável tribuno condena a ladroagem sobre todos os aspectos, sem
conceder ao ato de roubar nenhuma comiseração, posto ser mais certo que “em vez
de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam
consigo os reis ao inferno.” Pleno conhecedor do texto bíblico, vai Vieira
expondo sua tese assentada na imprescindível devolução do furto. Todavia,
segundo o pregador, a obrigatória restituição do bem roubado ao dono, não
implica em comutação da pena, posto que o dano já está concretizado. Em
especial se o patrimônio surrupiado pertence ao haveres do Estado. Ladrões da
coisa pública são mais perigosos e pecam mais gravemente, posto que “ofendem a
justiça pública, de que eles estão postos por defensores.”
Quanta
semelhança há entre os príncipes e ladrões do discurso de Vieira e os
governantes, sejam lulocomunopetistas ou golpistas que infelicitam o malsinado viver
dos brasileiros: “Há príncipes que correm com os ladrões e concorrem com eles.
Correm com eles, porque os admitem à sua familiaridade e graça, e concorrem com
eles, porque, dando-lhes autoridade e jurisdições, concorrem para o que eles
furtam.”. E citando São Basílio Magno: “os ladrões que mais própria e
dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os
exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos.” Oh,
desgraçado mundo! Oh, mais desgraçado Brasil! Assim foi no Portugal dos tempos
de Vieira, assim continua sendo nesta Terra de Santa Cruz dos dias hodiernos.
Hoje como ontem, aqui como lá “o verbo roubar se conjuga de todos os modos.”
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