sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A VOZ DE DEUS

                                                                                     

Barros Alves


Para Lucinha, como se trovão fosse música


Jorra dos Céus nos dias de invernada

Cântaros d’água sobre o arvoredo,

Muito assustada e trêmula de medo

Ela em mim se aconchega apavorada.

 

Meu abraço seguro lhe concedo,

Enquanto fora troa a trovoada...

Palpita o coração da minha amada

Bem junto ao meu, seu abrigo e rochedo.

 

Chuva é bênção que enche rios, mares...

Sei ser a voz de Deus esse trovão

A ecoar em todos os lugares.

 

- Nada temas! Sossega o coração!

É certeza que o ribombar nos ares

É a voz de Deus que ecoa na amplidão!

 

 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

CARNAVAL E POESIA

                                                                                           

Barros Alves

O que hoje se conhece entre nós como carnaval, é festança que já se presenciava no Brasil no final do período colonial, provinda de Portugal com o nome de entrudo. Eram manifestações populares que incluíam desfiles de fantasiados, músicas e fanfarras. Do entrudo se tem notícia a partir do século XVII como uma reminiscência das saturnais greco-romanas que se realizavam a 17 de dezembro e das lupercais em que o populacho se esbaldava comendo, bebendo e dançando para comemorar as colheitas. No Brasil o entrudo ganhou feição imensamente popular. De forma desorganizada, corriam pelas ruas, uns sujando os outros com farinha de trigo e polvilho, enquanto algumas pessoas folgavam em ficar em casa, derramando de suas janelas água suja sobre os passantes. Ontem como hoje, era uma festa que se despedia das liberalidades, das bebedices e glutonarias, para entrar no período quaresmal. Entrudo é palavra que lembra INTROITUS, nome latino usado pela Igreja para designar as solenidades litúrgicas da Quaresma. A festa está em data móvel do calendário e precede sempre a quarta-feira de cinzas, que marca o início do jejum, com suspensão da carne nas refeições, a CARNELEVALE, que significa exatamente a retirada da carne. Em Manuscrito de 1130 Du Cange registra essa expressão: “In Dominica in Caput Quadragesimae qaue dicitur carneleuale”. No domingo do início da Quaresma o qual é chamado carnelevale.

            O carnaval fixou-se no imaginário e no gosto do brasileiro de tal modo que nosso País é conhecido em todo o mundo como País do Carnaval, sendo este o título de um livro do romancista baiano Jorge Amado, que em outras obras deu visibilidade a essa festa do povo. Vadinho, um dos protagonistas do romance “Dona Flor e Seus Dois Maridos” morre em pleno desfile de carnaval logo no início da história. Não poucos escritores, ensaístas e poetas, entre os quais destaco Manuel Bandeira, detiveram-se em cantar os festejos mominos. Por agora, escolhi alguns poetas pra ilustrar a inspiração que o carnaval lhes proporcionou. Fi-lo despretensiosamente, de forma aleatória. Cito, de logo, o Príncipe dos Poetas Capixabas, Ciro Vieira da Cunha, com os sonetos que transcrevo:

 

CARNAVAL

 

Canta Pierrô e dança Colombina

ao som de um tango lúbrico e canalha... 

O cloretilo no salão se espalha,

reina o confete, impera a serpentina...

 

E como grita e folga essa gentalha,

gente infeliz que nunca se malsina:

mulheres cuja vida é a cocaína

e a morte o fio fino da navalha...

 

Só tu não danças – flor das espanholas! –

tu que tens feito tanta gente louca

com esses olhos – mudas castanholas...

 

Pensas, talvez, em amargura estranha,

nos dias que passaste presa à boca

de algum toureiro que ficou na Espanha.

 

DE UM PIERRÔ

 

Carnaval! Carnaval! A turba louca

Passa gritando pela rua em fora...

Nos bares, cabarés champanhe espouca

E a gente bebe até que venha a aurora...

 

Canta na rua um ébrio de voz rouca

Versos canalhas que a ralé adora...

É quase madrugada... Em minha boca

Amarga o sonho que meu peito chora...

 

Espero Colombina, alva de cal,

De olheiras de carvão e de olhos baços

Que vem trazer-me ao quarto o Carnaval...

 

O doce Carnaval do meu desejo:

- As brancas serpentinas de seus braços

E o confete vermelho do seu beijo...

 

            O entrudo e, posteriormente, o carnaval de rua eram manifestações inclusivas que tinham grande participação de escravos e negros alforriados, os quais se misturavam aos brancos na promíscua algazarra, um exercício prático de mestiçagem cultural e econômica, durante pelo menos três dias. Atualmente, apesar do açodamento do discurso inclusivo, não se pode dizer o mesmo, uma vez que o carnaval, transformado em indústria cultural, é para poucos aquinhoados que podem despender algumas centenas de reais, quando não milhares de dólares em camarotes de luxo,  para assistir ao feérico desfile no sambódromo da Marquês de Sapucaí ou em clubes elegantes.

Carnavais de rua continuam fazendo a alegria do folião, porque o povo não se deixa abater pelas circunstâncias adversas e, em se tratando de festa, o brasileiro enfrenta os ventos da procela para bailar os três ou quatro dias em honra do Rei Momo. O poeta Gerardo Ramon Pereira, em “Efêmera Ilusão” teve sensibilidade para expressar em versos a democracia carnavalesca que se desvencilha do racismo para fazer da folia instrumento de inclusão do negro durante os dias mominos.

 

Na pele negra a marca da injustiça

Cravada n’alma a fogo e preconceito...

Tanta alegria, tanto amor cobiça,

Mas só dor, fome e mágoa há no seu peito!

 

Vem... Chega o Carnaval! To do se atiça

E explode nele um homem satisfeito...

Samba com branca, negra e com mestiça,

Nu reino de igualdade vê-se eleito!

 

Três dias em que vive num harém

De ardentes colombinas tão amado...

O mundo é justo e gente ele é também,

 

Três dias vai durando o seu reinado;

Trezentos e sessenta e dois, porém,

Volta a ser pobre negro injustiçado.

 

 

 

 

 



domingo, 19 de fevereiro de 2023

CARNAVAL, FESTA DA CARNE

                                                                                    

Barros Alves

 

Uma amiga me deseja “um santo carnaval”. Digo-lhe que não há santo carnaval, porque hoje mais do que nos tempos do apóstolo Paulo, “o mundo jaz no maligno”. É certo que “santo” vem do grego “háguios”, que quer dizer “separado”. Porém, os cristãos são exatamente separados do mundo para Cristo; o mundo, no sentido bíblico, ao contrário, é separado de Cristo para o diabo.

Estamos no período momino. No Brasil os foliões se esbaldam festanças e bebedeiras por uma semana. A folia (do francês “folie”) é mesmo uma loucura. Todavia, originariamente, a palavra carnaval não significava festa da carne, consoante entende atualmente o senso comum estimulado pelo discurso religioso. Bem ao contrário, dizem os melhores etimologistas que o vocábulo significa ADEUS À CARNE, no sentido gastronômico. O professor José Lemos Monteiro leciona: “Uma etimologia que se tornou famosa e que muito se aproxima da verdade foi esta: Carnaval vem da expressão CARO VALE, ou seja, adeus à carne! Explica-se que o carnaval seja uma despedida da carne para uma entrada no peixe e no jejum da quaresma.” Mas, é claro que o costume cristão do recolhimento quaresmal criou todo um simbolismo posterior ao carnaval, excomungado a quadra momina como aquela em que as pessoas se entregam aos prazeres da carne e dos pecados.

            Porém, para o vocábulo carnaval há uma porção de etimologias referidas pelo professor Monteiro em seu livro ETIMOLOGIAS FANTASIOSAS, as quais passo a referir. Segundo a imaginativa etimologia inventada pelo Dr. Castro Lopes (1827-1901), polígrafo, médico e gramático que advogava um radical purismo na língua e apreciava de umas “viagens” etimológicas, o vocábulo carnaval resulta de dinâmicas transformações fonéticas da palavra LUPERCÁLIA, que lembra as LUPERCAIS, que o Dr. Castro Lopes trata de explicar pela palavra de Machado de Assis em uma de suas crônicas: “as lupercais eram celebradas em 15 de fevereiro; matava-se uma cabra, os sacerdotes untavam a cara com o sangue da vítima, ou atavam uma máscara no rosto e corriam seminus pela cidade.”

            Castro Lopes corre seminu montado no dorso de sua etimologia fantasiosa. Conforme escreveu, a palavra lupercália perdeu as letras l, p e i, restando “uercala”; esta, torcida detrás para frente forma “careual”; a letra “u” entre vogais transforma-se em “v”. Daí surgiu “careval”, que mercê da corrupção da linguagem popular adveio um “n” depois do “r” ficando “carneval. As corruptelas ao longo do tempo chegaram finalmente a CARNAVAL. Diante dessa surfada na maionese por parte do Dr. Castro Lopes, vale a observação de Voltaire: “A etimologia é uma ciência na qual as vogais nada valem e as consoantes muito pouco.”

A. Mauricéa Filho no “Dicionário de Curiosidades Etimológicas” apresenta uma origem do vocábulo carnaval assemelhada à do Dr. Castro Lopes, porém mais próxima da verdade. Segundo ele, “o culto a Dioniso reclamava de seus sectários uma exuberância de gestos e atitudes que muito já demonstravam das encenações teatrais. Movimentos de corpo, lembrando as nossas danças, em várias épocas, gesticulações e diálogos ruidosos, tal o que fazia parte do culto. Mas, não era tudo, ainda. A imagem da divindade era, em certas épocas, transportada em uma carruagem enfeitadíssima a que os romanos denominaram CARRUS NAVALIS, isto é, CARRO NAVAL, conduzida em meio aos evoés de homens e mulheres em procissão, de máscaras, a correrem as ruas em frenéticas expansões de júbilo. Aquelas procissões dionisíacas intitulavam-se COMOS, termo provavelmente relacionado com os COMES e que representavam os primitivos aldeamentos de que foram originadas as comarcas. Também de COMOS nos vem a expressão comédia, interessantes burlas, imaginadas para distrair, no seu isolamento, as sacrificadas populações das aldeias. Do CARRUS NAVALIS, que transportava o deus Dioniso nas patuscadas, ou melhor, na melhor, na sagrada pândega dos gregos, gerou-se o CARNAVAL. A procissão dirigia-se de cidade a cidade e os que nela tomavam parte iam atirando, nos encontrassem pelos caminhos, uma chuva de motejos, pilhérias, chufas e artimanhas de todo jeito... A coisa tornou-se mais aguda e generalizada, quando Psístrato, para agradar melhor os camponeses, resolvera dar ao culto do deus Dioniso, um culto oficial. Contudo, se dissemos que o carnaval, na sua origem, muito serviu de indústria aos políticos, como é o caso daquele sagacíssimo Psístrato, também serviu às Arte, o que seria injustiça nossa esquecermos, porquanto foram aquelas procissões dionisíacas o especial incentivo para que homens como o genial Epicarmo de Castro, por volta de 550 a. C., desse às burlas do populacho divertido e crédulo uma nova forma de arte teatral – a comédia – que ainda é e continuará a ser um dos aperitivos ou regalos do homem civilizado.”

O professor Lemos Monteiro se vale do Pe. Augusto Magne, insigne latinista, para afirmar que não são necessárias todas essas “viagens” para assentar que “o vocábulo português carnaval deriva do italiano CARNEVALE, por sua vez oriundo da expressão latina CARNEM LEVARE, isto é, deixar a carne, suspender – levare – o uso desse alimento proibido durante a quaresma.” E aduz a definitiva lição do Padre Augusto Magne: “Como o francês ‘carnaval’, o português ‘carnaval’ é o italiano ‘carnevale’ ou ‘carnovale’, na origem apenas aplicado ao dia imediato à quaresma e que é variante o antigo italiano ‘carnelevare’; compare-se, outrossim, o antigo milanês ‘carnelevale’, o genovês ‘carlevé, etc. – formas todas procedentes da expressão latina medieval ‘carnem levare’; ‘carnislevarium’ lê-se em documento do século XIII (...) A palavra entrou duas vezes em francês: no fr. ant, com a forma ‘quarnivalle’, século XIII, introduzido apenas localmente por mercantes toscanos; mais tarde no médio fr. ‘carnaval’, por influência dos grandes festejos carnavalescos realizados na Itália durante o Renascimento. Do francês o vocábulo passou para o alemão ‘karneval’, 1669; posteriormente para o inglês ‘carneval’.

Vê-se, portanto, que depois dessa longa trajetória etimológica, o carnaval, na prática deixou de ser um “adeus à carne” enquanto iguaria, para se tronar, de fato, uma festa da carne no sentido bíblico que caracteriza o desejo pecaminoso. E se fez brasileiro. Ora, se Deus é brasileiro, o diabo, naturalmente invejoso, também assim quis sê-lo.