domingo, 19 de fevereiro de 2023

CARNAVAL, FESTA DA CARNE

                                                                                    

Barros Alves

 

Uma amiga me deseja “um santo carnaval”. Digo-lhe que não há santo carnaval, porque hoje mais do que nos tempos do apóstolo Paulo, “o mundo jaz no maligno”. É certo que “santo” vem do grego “háguios”, que quer dizer “separado”. Porém, os cristãos são exatamente separados do mundo para Cristo; o mundo, no sentido bíblico, ao contrário, é separado de Cristo para o diabo.

Estamos no período momino. No Brasil os foliões se esbaldam festanças e bebedeiras por uma semana. A folia (do francês “folie”) é mesmo uma loucura. Todavia, originariamente, a palavra carnaval não significava festa da carne, consoante entende atualmente o senso comum estimulado pelo discurso religioso. Bem ao contrário, dizem os melhores etimologistas que o vocábulo significa ADEUS À CARNE, no sentido gastronômico. O professor José Lemos Monteiro leciona: “Uma etimologia que se tornou famosa e que muito se aproxima da verdade foi esta: Carnaval vem da expressão CARO VALE, ou seja, adeus à carne! Explica-se que o carnaval seja uma despedida da carne para uma entrada no peixe e no jejum da quaresma.” Mas, é claro que o costume cristão do recolhimento quaresmal criou todo um simbolismo posterior ao carnaval, excomungado a quadra momina como aquela em que as pessoas se entregam aos prazeres da carne e dos pecados.

            Porém, para o vocábulo carnaval há uma porção de etimologias referidas pelo professor Monteiro em seu livro ETIMOLOGIAS FANTASIOSAS, as quais passo a referir. Segundo a imaginativa etimologia inventada pelo Dr. Castro Lopes (1827-1901), polígrafo, médico e gramático que advogava um radical purismo na língua e apreciava de umas “viagens” etimológicas, o vocábulo carnaval resulta de dinâmicas transformações fonéticas da palavra LUPERCÁLIA, que lembra as LUPERCAIS, que o Dr. Castro Lopes trata de explicar pela palavra de Machado de Assis em uma de suas crônicas: “as lupercais eram celebradas em 15 de fevereiro; matava-se uma cabra, os sacerdotes untavam a cara com o sangue da vítima, ou atavam uma máscara no rosto e corriam seminus pela cidade.”

            Castro Lopes corre seminu montado no dorso de sua etimologia fantasiosa. Conforme escreveu, a palavra lupercália perdeu as letras l, p e i, restando “uercala”; esta, torcida detrás para frente forma “careual”; a letra “u” entre vogais transforma-se em “v”. Daí surgiu “careval”, que mercê da corrupção da linguagem popular adveio um “n” depois do “r” ficando “carneval. As corruptelas ao longo do tempo chegaram finalmente a CARNAVAL. Diante dessa surfada na maionese por parte do Dr. Castro Lopes, vale a observação de Voltaire: “A etimologia é uma ciência na qual as vogais nada valem e as consoantes muito pouco.”

A. Mauricéa Filho no “Dicionário de Curiosidades Etimológicas” apresenta uma origem do vocábulo carnaval assemelhada à do Dr. Castro Lopes, porém mais próxima da verdade. Segundo ele, “o culto a Dioniso reclamava de seus sectários uma exuberância de gestos e atitudes que muito já demonstravam das encenações teatrais. Movimentos de corpo, lembrando as nossas danças, em várias épocas, gesticulações e diálogos ruidosos, tal o que fazia parte do culto. Mas, não era tudo, ainda. A imagem da divindade era, em certas épocas, transportada em uma carruagem enfeitadíssima a que os romanos denominaram CARRUS NAVALIS, isto é, CARRO NAVAL, conduzida em meio aos evoés de homens e mulheres em procissão, de máscaras, a correrem as ruas em frenéticas expansões de júbilo. Aquelas procissões dionisíacas intitulavam-se COMOS, termo provavelmente relacionado com os COMES e que representavam os primitivos aldeamentos de que foram originadas as comarcas. Também de COMOS nos vem a expressão comédia, interessantes burlas, imaginadas para distrair, no seu isolamento, as sacrificadas populações das aldeias. Do CARRUS NAVALIS, que transportava o deus Dioniso nas patuscadas, ou melhor, na melhor, na sagrada pândega dos gregos, gerou-se o CARNAVAL. A procissão dirigia-se de cidade a cidade e os que nela tomavam parte iam atirando, nos encontrassem pelos caminhos, uma chuva de motejos, pilhérias, chufas e artimanhas de todo jeito... A coisa tornou-se mais aguda e generalizada, quando Psístrato, para agradar melhor os camponeses, resolvera dar ao culto do deus Dioniso, um culto oficial. Contudo, se dissemos que o carnaval, na sua origem, muito serviu de indústria aos políticos, como é o caso daquele sagacíssimo Psístrato, também serviu às Arte, o que seria injustiça nossa esquecermos, porquanto foram aquelas procissões dionisíacas o especial incentivo para que homens como o genial Epicarmo de Castro, por volta de 550 a. C., desse às burlas do populacho divertido e crédulo uma nova forma de arte teatral – a comédia – que ainda é e continuará a ser um dos aperitivos ou regalos do homem civilizado.”

O professor Lemos Monteiro se vale do Pe. Augusto Magne, insigne latinista, para afirmar que não são necessárias todas essas “viagens” para assentar que “o vocábulo português carnaval deriva do italiano CARNEVALE, por sua vez oriundo da expressão latina CARNEM LEVARE, isto é, deixar a carne, suspender – levare – o uso desse alimento proibido durante a quaresma.” E aduz a definitiva lição do Padre Augusto Magne: “Como o francês ‘carnaval’, o português ‘carnaval’ é o italiano ‘carnevale’ ou ‘carnovale’, na origem apenas aplicado ao dia imediato à quaresma e que é variante o antigo italiano ‘carnelevare’; compare-se, outrossim, o antigo milanês ‘carnelevale’, o genovês ‘carlevé, etc. – formas todas procedentes da expressão latina medieval ‘carnem levare’; ‘carnislevarium’ lê-se em documento do século XIII (...) A palavra entrou duas vezes em francês: no fr. ant, com a forma ‘quarnivalle’, século XIII, introduzido apenas localmente por mercantes toscanos; mais tarde no médio fr. ‘carnaval’, por influência dos grandes festejos carnavalescos realizados na Itália durante o Renascimento. Do francês o vocábulo passou para o alemão ‘karneval’, 1669; posteriormente para o inglês ‘carneval’.

Vê-se, portanto, que depois dessa longa trajetória etimológica, o carnaval, na prática deixou de ser um “adeus à carne” enquanto iguaria, para se tronar, de fato, uma festa da carne no sentido bíblico que caracteriza o desejo pecaminoso. E se fez brasileiro. Ora, se Deus é brasileiro, o diabo, naturalmente invejoso, também assim quis sê-lo.  

 

 

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