segunda-feira, 14 de setembro de 2020

VALEI-ME, SÃO FRANCISCO!

 Basílica de Canindé Foto de Marcello M. Belém | Olhares - Fotografia Online

Barros Alves

 Aproxima-se o 4 de outubro com as festividades em honra de São Francisco. Eu, com prenome Francisco, sou devoto do santo homônimo. Que me presenteou com minha cara metade canindeense, inclusive. Frequentemente vou a Canindé, pelo santo e pela família dela. Mas, sempre que chego à cidade, em face das conversas e observações, às vezes me assusto e me decepciono diante dos atropelos que franciscanos moralmente desleixados e em total descompasso espiritual com a pregação do “Poverello” de Assis. Alguns, pouco ou nada contribuem para o crescimento espiritual do rebanho de fiéis e romeiros, que em profunda contrição e devoção cega passam ao largo dos desmantelos eclesiais e teológicos que têm acometido o franciscanismo de fachada, desviado do verdadeiro espírito franciscano. Vêm-me à mente desvios de outros tempos, como aquele referido pelo Barão de Studart, dando conta de que os próprios administradores dos bens de São Francisco chegaram “ao ponto de assaltar e arrombar o cofre depositado na Egreja matriz para d’elle subtrahir as quantias existentes, cometendo assim um crime e um sacrilégio”, consoante a exposição do Bispo Dom Joaquim ao proceder a intervenção na “administração dos bens de São Francisco das Chagas, padroeiro da Matriz de Canindé”, em 1º de março de 1897, que então se achava em “anormalíssimo estado.” (Cf. “Datas e Factos para a História do Ceará”, do Barão de Studart, 1924, pág. 101).

Daquele tempo a esta parte, outros desvios assomaram, entre os quais liberdades que fogem dos cânones litúrgicos e transformam a Santa Missa em verdadeiras “showmissas”; ou aqueles desvios em que se fez do púlpito palanque, em pregações de apoio desavergonhado a ações de grupos marginais como o MST, assim como a candidatos corruPTos do partido que se transformou em organização criminosa, chegando-se a vilipendiar o altar com faixas vermelhas de propaganda política; ou à formulação de convite público aos fiéis ainda contritos depois da eucaristia, para participarem de passeata política de apoio a laranja de presidiário. Por estas e outras, que dizem da pouca moral de gente que prega a santidade, quando chego em Canindé, há momentos em que tenho vontade de declamar em praça pública o soneto que o poeta português Filinto Elísio escreveu há mais de duzentos anos, mas conserva incrível atualidade:

 

Cristo morreu há mil e tantos anos;

foi descido da cruz, logo enterrado;

até aqui de pedir não tem cessado

para o sepulcro dele os franciscanos.

 

Tornou Cristo a surgir entre os humanos,

subiu da terra aos céus, lá está sentado,

inda à saúde dele sepultado

bem (o saco o paga) estes maganos.

 

E cuida quem lhes dá a sua esmola,

que eles a gastam em função tão pia?

Quanto vos enganais, oh gente tola!

 

O altar-mor com dois cotos se alumia;

e o frade com a puta que o consola,

gasta de noite o que lhe dais de dia.

 

Continuo a crer e a beber na fonte a pregação do santo; a dos fradecos vermelhos nem me dou ao trabalho de ouvir.  Com as devidas e raríssimas exceções.

 

           

 

Basílica de Canindé Foto de Marcello M. Belém | Olhares - Fotografia Online

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E FAKE NEWS

 Fake News e censura: a mais nova história de uma proposta que ninguém apoia  - Dissenso

Barros Alves

 

De logo, expresso meu entendimento sobre as recentes ocorrências policiais que agridem a liberdade de expressão. A leitura que faço dessa prioridade que se está dando à discussão jurídica e midiática sobre leis que proíbem fakenews e, sobretudo, ao esdrúxulo inquérito aberto a partir do Supremo Tribunal Federal para investigar disseminadores de fakenews contra membros da Corte, constituem uma aloprada estratégia da esquerdalha que aparelhou as instituições brasileiras, cujo sutil e malicioso  objetivo é desviar a atenção da sociedade para os atos imorais, senão criminosos, que algumas autoridades alinhadas à esquerda, estão a praticar Brasil afora. Por pertinente, importa lembrar que já em abril do ano passado a então Procuradora-geral da República, Raquel Dodge, solicitou ao presidente do STF, Dias Toffoli, o arquivamento do destrambelhado inquérito. Dodge argumentou com propriedade que o alvo da investigação não foi delimitado, tampouco os alvos das apurações. No ofício enviado ao STF, a procuradora sentenciou: “Note-se que a competência da Suprema Corte é definida pela Constituição tendo em conta o foro dos investigados e não o foro das vítimas de ato criminoso. Ou seja, a competência do Supremo Tribunal Federal não é definida em função do fato de esta Corte ser eventual vítima de fato criminoso”. O ministro Alexandre de Moraes a quem cabia ouvir a sugestão do Ministério Público, simplesmente fez ouvido de mercador e se transformou numa espécie de trindade antijurídica: ele enquanto membro do STF é vítima, investigador e julgador. Com efeito, esse inquérito, com as constrangedoras ações policialescas dele decorrentes, configura explicitamente medida própria de governos autoritários. Parece que estamos vendo entre alguns togados um exercício de aprendizagem de nazismo, que não se subsume apenas a filigranas jurídicas. Certamente por vislumbrar extropolação autoritária da competência constitucional da Corte, é que o atual chefe do Ministério Público Federal, Procurador Augusto Aras, seguindo os passos de sua antecessora, pediu ao STF a suspensão do tal inquérito, cujo desenvolvimento mais parece uma tentativa de tolhimento da liberdade de expressão, direito constitucional que se inscreve como um dos sustentáculos do Estado democrático.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal não são deuses, não estão acima do bem e do mal. Portanto, não são infensos à críticas. Para eles, com maior ênfase  por serem os guardiões da Constituição, vale o que escreveu o ministro Luís Roberto Barroso em relação a candidatos e políticos, porque os senhores juízes também são figuras públicas pagas - regiamente pagas - com dinheiros oriundos dos nossos impostos. Leiamos o que escreveu o ministro Barroso: “A liberdade de expressão não é garantia de verdade ou de justiça. ELA É UMA GARANTIA DA DEMOCRACIA. Defender a liberdade de expressão pode significar ter de conviver com a injustiça e até mesmo com a inverdade. É o preço. Isso deve ser especialmente válido para candidatos e políticos em geral. QUEM NÃO GOSTA DE CRÍTICA, NÃO DEVE IR PARA O ESPAÇO PÚBLICO." (Ministro Luís Roberto Barroso, em prefácio ao livro "Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão", de autoria de Aline Osório. Editora Fórum, BH, 2017, pág. 21).

 

 

SONETOS EM MEMÓRIA DE MEUS PAIS

 

I

 

Mestre Zé Barros tinha força e raça,

Não era homem para brincadeira,

Um artista, seleiro de primeira,

Versado no forró e na cachaça.

 

Boa vida, boêmio, boa praça,

Pé de valsa, dançava a noite inteira,

Não levou uma vida rotineira

Esse cabra da peste de Mombaça.

 

Foi o meu pai um Dom Juan na aldeia.

Era bondoso, às vezes iracundo,

Irado ele tornava a coisa feia...

 

Não aturava malandro, vagabundo,

Com ele cabra ruim era na peia,

Foi esse homem que me pôs no mundo.

 

II

 

Mas o velho Zé Chico da Caiana

Fez-me o filho adotivo assaz querido,

Adotou-me quase recém-nascido,

Para acolher-me nem bateu pestana.

 

Mercê de Deus eu fui um escolhido

Por família católica, puritana,

De gente pobre, mas honesta e lhana,

Tornando-me um menino mui valido.

 

Zé Chico ensinou-me a ser temente,

Só a Deus e a ninguém mais no mundo

Inda que seja o homem mais valente.

 

Homem de brios foi meu pai segundo,

Cujos valores guardo eternamente

Tendo por ele sempre amor profundo.

 

III

 

O meu terceiro pai foi meu irmão

De nome João, apelidado Joca.

Um nome que meu pensamento invoca

Com sentimento de veneração.

 

Ele detinha um largo coração...

Sempre que rezo é Deus quem me convoca

Para rezar contrito ao Santo Joca,

Mais um santo da minha devoção.

 

Homem de paz, de amor, sem vaidade,

Trabalhador tenaz, analfabeto,

Que carregava um ar de santidade.

 

Eu nunca vi um homem mais correto...

Sua ausência me mata de saudade,

A ele eternamente o meu afeto!!!

CONFIANÇA

 Segura na mão de Deus - Samuel de Camargo - YouTube

Barros Alves

 Ó Santo Deus que me ama e não me ilude,

Perdoai meus desvios, travessuras,

Da mocidade as minhas aventuras,

Os pecados da minha juventude. 

 

Nunca fui um modelo de virtude,

Porém tento imitar as almas puras,

Me fio nas  Sagradas Escrituras,

Na Bíblia, no Corão e no Talmude.

 

Confio em Tua divinal Bondade,

Que me darás um bom lugar no Além,

Mercê da Tua imensa Caridade.

 

Somente a Tua graça me convém,

Quero viver contigo a eternidade

Pelos séculos dos séc’los, amém!

REMINISCÊNCIAS DA POETISA ROSA FIRMO

 Tudo Contudo: Rosa Firmo

 Barros Alves

A escritura memorial é como um rio que corre pelos contrafortes da lembrança e atravessa a saudade imorredoura de um passado sempre presente. Nessas águas, às vezes turbulentas, serenas em momentos outros, o memorialista nada a largas braçadas e mergulha no afã de resgatar pérolas escondidas nos desvãos da memória. Esses nautas viajores que buscam nos escaninhos do tempo fatos pretéritos, são dotados da virtude do compartilhamento. Anseiam compartilhar seus devaneios e sonhares, alegrias e pesares, vivências, realizações, visões de mundo. Rosa Firmo, poetisa, historiadora, artista plástica, mestra, cuja fina sensibilidade se alteia em tudo o que escreve, constitui exemplo desse fazer literário memorial pleno do espírito de compartilhamento das suas experiências de mulher, que traz consigo desde a tenra idade o mistério da sertanidade e o entusiasmo para desvendar o mundo, tendo descoberto que o instrumento propício para plantar a amizade em sulcos de afetividade é o ato de escrever, sendo isto  para ela uma missão transcendente.

Nascida em Quitaiús, vetusto distrito de Lavras da Mangabeira, mais precisamente no Sítio Tapera, onde viveu sem inquietações os dias aprazíveis da infância, Rosa Firmo hauriu na vida campestre os eflúvios com que perfuma algumas de  suas reminiscências aqui expostas a modo de crônicas, as quais embevecem o leitor, em especial aqueles que conhecem a região e as personagens coadjuvantes no teatro onde a autora, a protagonista, desenvolve a trama de sua vida, em toda a extensão dos acontecimentos e dos esforços que iluminaram o sentido dessa mulher que venceu os embates da caminhada pela inteligência, pelo estudo e pelo conhecimento.

MERGULHO – PULSAÇÕES DE VIDA, não poderia ser título mais apropriado para epigrafar os excertos autobiográficos da autora. Carregando evidente paradoxalidade, é ao mergulhar nas águas passadas que Rosa Firmo emerge com pérolas de vida pujante e em bom estilo transmite-nos, com sobriedade e força expressionista, o quadro vivo dos gestos humanos, dos lugares e das coisas. O filósofo espanhol Ortega y Gasset afirmava que o ser humano é as suas circunstâncias. Com efeito, não é demais dizer que as circunstâncias dão força à descrição e bastam alguns traços bem circunstanciados para dar intensidade à vida referida no texto escrito. De fato, ao escrever a crônica de episódios de sua vida, relembranças de vários matizes, Rosa Firmo assegura ao leitor a possibilidade de também ele ter vivenciado circunstâncias semelhantes. E eu me vi seu colega no Ginásio São João Batista, de Cedro, nos anos finais da década de 1960, quando as turbulências estudantis na Europa – pasmem! – repercutiam por todo o mundo e também em Cedro. Já naquele tempo, na pré-adolescência, meu sangue fervia pela atividade política, enquanto a então para mim  desconhecida colega Rosa Firmo se preparava para ser a competente mestra e escritora em que se transformou.

Daquele tempo a esta parte, mil circunstâncias ditaram a trajetória pessoal e intelectual da autora, que como ser humano se notabiliza pela mansidão e paciência; no viés intelectual por assomar como figura de escol no atual cenário literário e acadêmico do Ceará. Sem favor, não devo perder a aliteração: afirmo que Rosa Firmo é firme mestra da criação literária, posto que transita pela seara da ficção poética, pela pesquisa histórico-biográfica, pela prosa relevante, sem esquecer sua posição de educadora com impagáveis serviços prestados à juventude de nosso Estado.

Ao leitor, portanto, concedo a leitura de um livro que lhe proporcionará momentos prazerosos em face de um texto que enleva pelo estilo simples e a linguagem clara e franca.

                 

CRÔNICAS DO CENTENÁRIO

 

Cedro - Turismo Ceará

Barros Alves

         Neste ano da graça de 2020, em que o município de Cedro comemora um centenário de existência como ente político-administrativo autônomo, intento relembrar pessoas, coisas e fatos que marcaram minha vida de cedrense por adoção. Nascido na roça, pais analfabetos, quis o destino que uma irmã adotiva assumisse as responsabilidades de mãe para comigo. Foi presente de Deus. Maktub! Chamava-se Tereza Maria Alves e nascera em 14 de julho de 1925, na Fazenda Barreiros, de propriedade do senhor Vicente Bezerra, respeitável sertanejo que legou aos pósteros valores morais e éticos inegociáveis. Tereza ultrapassou a Carta de ABC por méritos próprios e, mercê de ingentes esforços, aprendeu a ler com desenvoltura, aficcionando-se aos parcos livros que lhe caíam nas mãos, com ênfase para a Literatura de Cordel, cujos clássicos como “Oliveiros e Ferrabrás” e “A Imperatriz Porcina” sabia de cor. Entusiasmava-se declamando Casemiro de Abreu (“Eu ia bem satisfeito/ De camisa aberta ao peito/ Pés descalços, braços nus...) ou “A Chegada de Lampião no Inferno”. 

        Lembro-me que nas tardes mornas da pacata Cedro da década de 1960 ela, cadeira na calçada, religiosamente lia para mim histórias bíblicas publicadas pela Editora Vozes, que inda hoje guardo como um tesouro que não tem preço. As mãos que folhearam aquele livro, na incessante busca do Mistério, foram as mesmas que me embalaram; mãos que teceram a teia de trabalho penoso para que me não faltasse o pão de cada dia, nem o vestir, nem o calçar, nem  principalmente, o estudar,  porque foram aquelas mãos abençoadas que me  conduziram aos livros e me fizeram compreender que o livro é o mais importante instrumento de libertação do pobre. Aqueles olhos cheios de bondade que perpassavam as páginas do velho compêndio de  História Sagrada, tinham algo de estoicismo diante das dificuldades cotidianas e sofrimentos que se esvaíam em imensas esperanças. Foi aquele olhar que imprimiu na minha alma o sentimento do sagrado e a certeza do amor de Deus; a fidelidade a princípios e valores que elevam o ser humano acima dos demais seres da Criação. Aquele olhar, a um tempo ígneo e suave, cheio de determinação e fé, continua refletido no fundo da minha retina, porque para mim é o olhar de uma santa providencialmente colocada em minha vida pelo desígnio dos Céus. Tereza  Maria Alves será para mim, nos dois mundos, o MEU AMORZINHO dos meus tempos de criança.

 

CRÔNICA DO CENTENÁRIO II: O RIACHO DA VACA BRABA

Barros Alves

        Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, escreveu um belo poema telúrico compendiado no volume “O Guardador de Rebanhos”, no qual evoca o rio que corria pela sua aldeia, ressaltando-lhe a grandeza em relação ao Tejo, grande rio de sua Pátria: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...” Um rio pequeno e acanhado, mas imenso na minha imaginação como o Amazonas, ainda escorre na saudade imorredoura da minha infância. Chamávamos de riacho porque tantas vezes, em face da aridez dos dias de verão, não passava de um filete a escorrer com resistência de criatura sertaneja; em outros tantos momentos sumia no chão crestado de um leito transformado em rachaduras como um desenho islâmico. Mas, tão logo caíam as primeiras precipitações pluviométricas da estação chuvosa, eis que o Riacho da Vaca Brava, agora feito rio de caudais imensas para os meus olhos de criança, como que se agigantava, levando de eito em catadupas o que vinha pela frente, correndo no rumo do Rio Salgado antes de chegar ao mar oceano. Às vezes a transformação do filete de água foi tão grande que o riacho feito rio, avolumado pelas águas rebeldes do Açude de Chico Ferreira, da Assunção, resolveu invadir a cidade de Cedro numa demonstração de sua reiterada ressurreição. O povo que o admirava, agora tinha medo do caudaloso rio que deixou toda a população a nadar feito peixe. 

            O padre Antônio Vieira, o prolífico escritor varzealegrense, não o conterrâneo de Pessoa, no livro “Sertão Brabo”, toma a defesa do rio e diz que o erro foi de quem construiu a cidade no leito original, então já desviado uma vez. Vieira lembra que a nomeação do rio deve-se ao lugar onde nasceu, a fazenda homônima. E nos conta anedota protagonizada por cantadores que foram relegados durante apresentação no lugar, onde as moças preferiram o “rela bucho” ao som mavioso do ponteio da viola: “As moças da Vaca Braba/ São todas doidas por dança,/ Se abufelam com os rapazes/ Juntando pança com pança,/ Nunca vi uma vaca braba/ Ter tanta garrota mansa.” Em 1963, o rio rugiu novamente, valente como uma vaca em cio, uma vaca brava, e invadiu a cidade cujo paredão de piçarra, o “desvio”, não conseguiu impedir a força das águas. Na inundação de 1963, com sete anos de idade, eu não temi o rio. Mergulhei nas águas barrentas como se me batizasse no Jordão e de lá saísse renascido para os embates da vida. Talvez por tanto ter-me banhado nas águas do Riacho da Vaca Braba, algo de bravura tenha em mim se introjetado para sempre, como esta lembrança que a um tempo é  dolorosa e rejuvenescedora, que teimosamente insiste em me levar de volta aos dias pluviais da minha infância, grávidos de sonhos e de liberdade.

 

CRÔNICAS DO CENTENÁRIO III:  PADRE CÍCERO PASSOU EM CEDRO?

Barros Alves

Recentemente vi em programa televisivo, entrevista do poeta Edson Reis, desvelado amante de nossa Cedro, que com propriedade e desvelo se atém no mister de divulgar povo e coisas do nosso chão. Todavia, arrimado em informações colhidas no livro “Gente da Gente”, de autoria do Sr. Cândido Acrísio Costa, edição de 1974, o poeta foi levado a deslizar em impropriedade histórica, sobretudo cronológica, ao afirmar que no ano de 1900 o Padre Cícero havia se demorado em Cedro, a caminho de Fortaleza, de onde partiria em sua peregrinação a Roma, na busca de justiça para causa em que se tornara réu no então Santo Ofício, tribunal inquisitorial da Igreja Católica, que o acoimava de heresia em face do chamado “Milagre da Beata.”

Não se pode olvidar a importância da história oral, na qual se fiou Cândido Acrísio Costa para tratar do assunto. Todavia, é imprescindível o cotejamento dessas informações com o registro escrito de fatos e provas documentais. Verba volant, scripta manent, assenta o axioma latino. As palavras voam, o que se escreve permanece. Não creio improvável que Padre Cícero tenha passado em Cedro. Todavia, não é verdade que Padre Cícero viajou para Roma via porto de Fortaleza, consoante a referência feita pelo poeta Edson Reis, arrimado – repito – na citada obra. Vários autores de clássicas biografias do Padre Cícero asseguram que o prelado, acompanhado do secretário João Davi, enfrentou os sertões pernambucanos com destino a Recife, onde chegou em janeiro de 1898, depois de uma viagem penosa, lutando contra as agruras da caminhada, no lombo de cavalo, mas “assinalada por estrondosas manifestações de júbilo popular.” (Cf. O PADRE CÍCERO QUE EU CONHECI, de Amália Xavier de Oliveira, 2ª edição, Ed. Premius, Fortaleza, 2001, pág. 121; e PADRE CÍCERO-MITO E REALIDADE, de Otacílio Anselmo, Ed. Civ. Brasileira, RJ, 1968, pág. 230).

O autor de “Gente da Gente” informa que Padre Cícero demorou-se em Cedro, no retorno e não na ida a Roma. Fê-lo segundo depoimento ouvido do pai, o Sr. Antônio Guedes Viana. Porém, comete o mesmo erro cronológico, situando o episódio no ano de 1900. Com efeito, Padre Cícero regressou da Cidade Eterna e o navio em que viajou aportou em Fortaleza, mas o prelado não se demorou na capital cearense. Ralph Della Cava, brasilianista que escreveu o clássico MILAGRE EM JOASEIRO, e quem eu tive a honra de entrevistar nas comemorações dos 40 anos da publicação da citada obra, tendo por base as anotações do próprio taumaturgo, informa que Padre Cícero chegou a Fortaleza provindo de Roma, “no dia 12 de novembro, seguindo para Juazeiro no dia 20; lá chegou a 4 de dezembro de 1898.” (Cf. 3ª edição, Cia. das Letras, SP, 2014, pág. 396) Ora, fica, então, assentado que o Meu Padim não passou em Cedro em março de 1900, segundo a referência de Cândido Acrísio Costa. Depois do regresso de Roma, o Padre Cícero não arredou pé de Juazeiro, consoante afirma a unanimidade de seus biógrafos.