segunda-feira, 14 de setembro de 2020

CRÔNICAS DO CENTENÁRIO

 

Cedro - Turismo Ceará

Barros Alves

         Neste ano da graça de 2020, em que o município de Cedro comemora um centenário de existência como ente político-administrativo autônomo, intento relembrar pessoas, coisas e fatos que marcaram minha vida de cedrense por adoção. Nascido na roça, pais analfabetos, quis o destino que uma irmã adotiva assumisse as responsabilidades de mãe para comigo. Foi presente de Deus. Maktub! Chamava-se Tereza Maria Alves e nascera em 14 de julho de 1925, na Fazenda Barreiros, de propriedade do senhor Vicente Bezerra, respeitável sertanejo que legou aos pósteros valores morais e éticos inegociáveis. Tereza ultrapassou a Carta de ABC por méritos próprios e, mercê de ingentes esforços, aprendeu a ler com desenvoltura, aficcionando-se aos parcos livros que lhe caíam nas mãos, com ênfase para a Literatura de Cordel, cujos clássicos como “Oliveiros e Ferrabrás” e “A Imperatriz Porcina” sabia de cor. Entusiasmava-se declamando Casemiro de Abreu (“Eu ia bem satisfeito/ De camisa aberta ao peito/ Pés descalços, braços nus...) ou “A Chegada de Lampião no Inferno”. 

        Lembro-me que nas tardes mornas da pacata Cedro da década de 1960 ela, cadeira na calçada, religiosamente lia para mim histórias bíblicas publicadas pela Editora Vozes, que inda hoje guardo como um tesouro que não tem preço. As mãos que folhearam aquele livro, na incessante busca do Mistério, foram as mesmas que me embalaram; mãos que teceram a teia de trabalho penoso para que me não faltasse o pão de cada dia, nem o vestir, nem o calçar, nem  principalmente, o estudar,  porque foram aquelas mãos abençoadas que me  conduziram aos livros e me fizeram compreender que o livro é o mais importante instrumento de libertação do pobre. Aqueles olhos cheios de bondade que perpassavam as páginas do velho compêndio de  História Sagrada, tinham algo de estoicismo diante das dificuldades cotidianas e sofrimentos que se esvaíam em imensas esperanças. Foi aquele olhar que imprimiu na minha alma o sentimento do sagrado e a certeza do amor de Deus; a fidelidade a princípios e valores que elevam o ser humano acima dos demais seres da Criação. Aquele olhar, a um tempo ígneo e suave, cheio de determinação e fé, continua refletido no fundo da minha retina, porque para mim é o olhar de uma santa providencialmente colocada em minha vida pelo desígnio dos Céus. Tereza  Maria Alves será para mim, nos dois mundos, o MEU AMORZINHO dos meus tempos de criança.

 

CRÔNICA DO CENTENÁRIO II: O RIACHO DA VACA BRABA

Barros Alves

        Alberto Caeiro, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, escreveu um belo poema telúrico compendiado no volume “O Guardador de Rebanhos”, no qual evoca o rio que corria pela sua aldeia, ressaltando-lhe a grandeza em relação ao Tejo, grande rio de sua Pátria: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...” Um rio pequeno e acanhado, mas imenso na minha imaginação como o Amazonas, ainda escorre na saudade imorredoura da minha infância. Chamávamos de riacho porque tantas vezes, em face da aridez dos dias de verão, não passava de um filete a escorrer com resistência de criatura sertaneja; em outros tantos momentos sumia no chão crestado de um leito transformado em rachaduras como um desenho islâmico. Mas, tão logo caíam as primeiras precipitações pluviométricas da estação chuvosa, eis que o Riacho da Vaca Brava, agora feito rio de caudais imensas para os meus olhos de criança, como que se agigantava, levando de eito em catadupas o que vinha pela frente, correndo no rumo do Rio Salgado antes de chegar ao mar oceano. Às vezes a transformação do filete de água foi tão grande que o riacho feito rio, avolumado pelas águas rebeldes do Açude de Chico Ferreira, da Assunção, resolveu invadir a cidade de Cedro numa demonstração de sua reiterada ressurreição. O povo que o admirava, agora tinha medo do caudaloso rio que deixou toda a população a nadar feito peixe. 

            O padre Antônio Vieira, o prolífico escritor varzealegrense, não o conterrâneo de Pessoa, no livro “Sertão Brabo”, toma a defesa do rio e diz que o erro foi de quem construiu a cidade no leito original, então já desviado uma vez. Vieira lembra que a nomeação do rio deve-se ao lugar onde nasceu, a fazenda homônima. E nos conta anedota protagonizada por cantadores que foram relegados durante apresentação no lugar, onde as moças preferiram o “rela bucho” ao som mavioso do ponteio da viola: “As moças da Vaca Braba/ São todas doidas por dança,/ Se abufelam com os rapazes/ Juntando pança com pança,/ Nunca vi uma vaca braba/ Ter tanta garrota mansa.” Em 1963, o rio rugiu novamente, valente como uma vaca em cio, uma vaca brava, e invadiu a cidade cujo paredão de piçarra, o “desvio”, não conseguiu impedir a força das águas. Na inundação de 1963, com sete anos de idade, eu não temi o rio. Mergulhei nas águas barrentas como se me batizasse no Jordão e de lá saísse renascido para os embates da vida. Talvez por tanto ter-me banhado nas águas do Riacho da Vaca Braba, algo de bravura tenha em mim se introjetado para sempre, como esta lembrança que a um tempo é  dolorosa e rejuvenescedora, que teimosamente insiste em me levar de volta aos dias pluviais da minha infância, grávidos de sonhos e de liberdade.

 

CRÔNICAS DO CENTENÁRIO III:  PADRE CÍCERO PASSOU EM CEDRO?

Barros Alves

Recentemente vi em programa televisivo, entrevista do poeta Edson Reis, desvelado amante de nossa Cedro, que com propriedade e desvelo se atém no mister de divulgar povo e coisas do nosso chão. Todavia, arrimado em informações colhidas no livro “Gente da Gente”, de autoria do Sr. Cândido Acrísio Costa, edição de 1974, o poeta foi levado a deslizar em impropriedade histórica, sobretudo cronológica, ao afirmar que no ano de 1900 o Padre Cícero havia se demorado em Cedro, a caminho de Fortaleza, de onde partiria em sua peregrinação a Roma, na busca de justiça para causa em que se tornara réu no então Santo Ofício, tribunal inquisitorial da Igreja Católica, que o acoimava de heresia em face do chamado “Milagre da Beata.”

Não se pode olvidar a importância da história oral, na qual se fiou Cândido Acrísio Costa para tratar do assunto. Todavia, é imprescindível o cotejamento dessas informações com o registro escrito de fatos e provas documentais. Verba volant, scripta manent, assenta o axioma latino. As palavras voam, o que se escreve permanece. Não creio improvável que Padre Cícero tenha passado em Cedro. Todavia, não é verdade que Padre Cícero viajou para Roma via porto de Fortaleza, consoante a referência feita pelo poeta Edson Reis, arrimado – repito – na citada obra. Vários autores de clássicas biografias do Padre Cícero asseguram que o prelado, acompanhado do secretário João Davi, enfrentou os sertões pernambucanos com destino a Recife, onde chegou em janeiro de 1898, depois de uma viagem penosa, lutando contra as agruras da caminhada, no lombo de cavalo, mas “assinalada por estrondosas manifestações de júbilo popular.” (Cf. O PADRE CÍCERO QUE EU CONHECI, de Amália Xavier de Oliveira, 2ª edição, Ed. Premius, Fortaleza, 2001, pág. 121; e PADRE CÍCERO-MITO E REALIDADE, de Otacílio Anselmo, Ed. Civ. Brasileira, RJ, 1968, pág. 230).

O autor de “Gente da Gente” informa que Padre Cícero demorou-se em Cedro, no retorno e não na ida a Roma. Fê-lo segundo depoimento ouvido do pai, o Sr. Antônio Guedes Viana. Porém, comete o mesmo erro cronológico, situando o episódio no ano de 1900. Com efeito, Padre Cícero regressou da Cidade Eterna e o navio em que viajou aportou em Fortaleza, mas o prelado não se demorou na capital cearense. Ralph Della Cava, brasilianista que escreveu o clássico MILAGRE EM JOASEIRO, e quem eu tive a honra de entrevistar nas comemorações dos 40 anos da publicação da citada obra, tendo por base as anotações do próprio taumaturgo, informa que Padre Cícero chegou a Fortaleza provindo de Roma, “no dia 12 de novembro, seguindo para Juazeiro no dia 20; lá chegou a 4 de dezembro de 1898.” (Cf. 3ª edição, Cia. das Letras, SP, 2014, pág. 396) Ora, fica, então, assentado que o Meu Padim não passou em Cedro em março de 1900, segundo a referência de Cândido Acrísio Costa. Depois do regresso de Roma, o Padre Cícero não arredou pé de Juazeiro, consoante afirma a unanimidade de seus biógrafos.

 


 

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