quarta-feira, 1 de junho de 2022

                                                                        


Barros Alves

             Poucas pessoas sabem que lei e norma são coisas diferentes. Esta advém daquela e resulta de um processo de interpretação feita pelo julgador daquilo que foi positivado no ordenamento escrito pelos nossos representantes nas Casas Legislativas. Ou seja, de fato, nem sempre a norma que emana da lei reflete o espírito do legislador ou a idéia geradora daquele diploma legal, que o juiz com seus malabarismos hermenêuticos empresta à letra da lei. No Brasil atual temos visto abusivas distorções hermenêuticas até da Suprema Corte, que em incompreensíveis exercícios hermenêuticos tem desmoralizado a segurança jurídica, imprescindível ao cidadão numa democracia. Caso exemplar é o da prisão do réu após o julgamento em segunda instância. Os magistrados do STF em um determinado momento acharam e justificaram que tal não deveria ocorrer, pois a Constituição não permite. Pouco tempo depois modificaram essa jurisprudência argumentando que a justiça deve ser feita com fundamento na ética em favor da sociedade, insistentemente vítima de corruptos e ladrões dos dinheiros públicos. E toda a argumentação foi formulada em cima da Constituição, dizendo eles que a Carta Cidadã é principiológica. Porém, em menos tempo ainda, estabeleceram nova jurisprudência, também arrimada na Constituição, remetendo os julgamentos à obediência à letra da Lex Magna, segundo a qual ninguém pode ser preso senão depois do processo ter transitado em julgado; ou seja, depois da palavra final de um semideus do Judiciário, e não havendo mais lugar para recurso. Dezenas de exemplos poderiam ser apresentados sobre essas idas e vindas da jurisprudência brasileira.

Lei e jurisprudência são elaboradas por homens cheios de defeitos e idiossincrasias, homens passíveis de falhas, de caráter inclusive. Então, apesar de alguns, em especial aqueles que estão no topo da pirâmide do Judiciário, se acharem acima dos mortais, só a ingênuos, crédulos ou cúmplices é dado acreditar que não são cometidos erros clamorosos em inúmeros processos judiciais, alguns até praticados de forma proposital por juízes comprometidos com tudo, menos com a Justiça. Uma observação sábia e pertinente fez o respeitável jurista Piero Calamandrei em obra clássica intitulada “Eles, os juízes, vistos por um advogado”. Eis o que escreveu o mestre italiano: “Não adianta dizer, como se ouve repetir com demasiado simplismo, que a função dos magistrados é aplicar a lei e que, portanto, se mudança de regime significa mudança de leis, o ofício dos magistrados permanece sempre o mesmo, resumido no dever de serem fiéis às leis em vigor. Quem assim raciocina não quer perceber que as leis são fórmulas vazias, que o juiz cada vez preenche não só com sua lógica, mas também com seu sentimento. Antes de aplicar uma lei, o juiz como homem, é levado a julgá-la; conforme sua consciência moral e sua opinião política a aprovem ou reprovem, ele aplicará com maior ou menor convicção, isto é, com maior ou menor fidelidade. A interpretação das leis deixa ao juiz certa margem de opção; dentro dessa margem, quem comanda não é a lei inexorável, mas o coração mutável do juiz.” Vê-se com clareza que no Brasil atual há ministros da Suprema Corte que alargaram tão irresponsavelmente essa margem de que fala Calamandrei, que extravasaram sua competência constitucional, invadindo a competência dos demais poderes, sobretudo a do Poder Executivo.

Lembrando as referências que nossa literatura faz aos juízes, explicitando a visão dos escritores e a visão que eles imaginam ter as pessoas dos magistrados, por agora transcrevo excerto do romance “A Luneta Mágica”, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). Este clássico da literatura brasileira demonstra que não apenas o despreparo, a corrupção, as indevidas ingerências da politicagem, mas a própria condição humana seria em grande medida avessa à Justiça como um valor inalienável. Eis o dilema de personagem da obra em tela, depois de presenciar um ambiente de inocentes condenados: “Voltava para casa dominado por pensamentos perigosos e revolucionários, e desejoso de uma profunda transformação social, que acabasse com os algozes e salvasse as vítimas; mas, de súbito, parei: a casualidade me mostrava um grupo de cinco homens, conversando alegremente na rua, onde acabavam de encontrar-se; conheci a todos cinco: três eram desembargadores, e dois eram juízes de direito, portanto, presidentes de júri; simples aplicadores da lei, ou fiscalizadores das nulidades, e das regras legais dos processos, eram contudo magistrados, e tendo contribuído para a condenação e tormento de tantos inocentes, os monstros ainda podiam conversar com alegria! Fitei sobre eles a luneta mágica, estudando-os um por um para inteirar-me de todos os instintos ferozes ocultos em seus corações de tigres...”  Que diria Joaquim Manuel de Macedo se apontasse a sua luneta mágica para os ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal no Brasil dos dias atuais? 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário