quarta-feira, 1 de junho de 2022

O JUIZ E A LITERATURA - Parte 4

                                                                        


Barros Alves

            A ninguém é dado desconhecer que o Judiciário brasileiro passa por uma crise moral nunca antes vista neste País (créditos para o mais beneficiado por essa crise, o ex-presidiário-mor). A militância ideológica de viés partidário adentrou nos mais altos escalões do Poder. Na Suprema Corte brasileira, as togas mudaram de cor e a tribuna jurisdicional transformou-se em palanque político permanente, conspurcando a sacralidade da Justiça. A solenidade e a discrição que devem ser dogmas no exercício do múnus judicante desceram pelo ralo. Egos inflamados de jactância e imodéstia fazem do Plenário augusto um ringue de disputas verbais e agressões desvestidas de quaisquer sem-cerimônias. As decisões de enfatuados e bem falantes ministros abandonaram os mais elementares conceitos do direito pregado nas Academias para arrimar-se em verdadeiros exercícios de vingança explícita. O que se tem visto às claras são decisões de ministros assentarem-se não no direito que produz a justiça, mas naquilo que Rudolf von Ihering dizia que o homem obrigava-se moralmente a lutar contra, ou seja, “contra o interesse mesquinho, a cupidez, a interpretação maliciosa, a prepotência e todas as formas que tendem, egoisticamente, ao sacrifício do direito alheio.”

Adoentada de um comodismo que depaupera e fragiliza o caráter, grande parcela de brasileiros não atentou ainda para o processo de deterioração do direito entre nós, e por ele não tem lutado, consoante o ensinamento de Ihering. Postado numa atitude de covardia, vê a toga envolvida pela política partidária e, consequentemente, pelo escárnio da populaça ignara, mas sem a ação concreta de legítimas lideranças que arrostem obstáculos interpostos para a consecução da justiça, por aqueles que dela necessitam. Vêem a banda dos togados passar cantando hinos autoritários à moda nazista e apontam o dedo para o lado oposto. Estamos em um momento parecido ao que precedeu o Terceiro Reich, onde o Direito se confundiu com a suástica. Mutatis mutandis, no Brasil dos aziagos dias hodiernos, - não digo o Direito na sua expressão pura -, mas decisões jurisprudenciais adotadas pela Suprema Corte estão a se confundir com a foice e o martelo, que no seu viés autoritário é irmão siamês da suástica. Vale o grito de alerta do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que ao seu tempo sofreu perseguição dos dois lados:

 

“Nós vos pedimos com insistência:

Nunca digam: - Isso é natural!

Diante dos acontecimentos de cada dia,

Numa época em que corre o sangue,

Em que o arbitrário tem força de lei,

Em que a humanidade se desumaniza,

Não digam nunca: - Isso é natural!    

A fim de que nada passe por imutável...

 

A professora Fabiana Marion Spengler ao discorrer sobre símbolo, mito e rito na seara da magistratura, lembra que “o juiz é visto como um ser diferenciado, possuidor de uma autoridade incontrastável, cheia de poderes. Essa figura mitológica se faz reconhecer por seus símbolos (a toga, o martelo, o prédio da Justiça, entre outros)”. Entre nós, além do martelo, o magistrado já empunha a foice de forma escandalosa. Ao que parece nesse Brasil em que vivemos não há grande preocupação com o direito e, consequentemente, muito menos com a justiça. Talvez tenha sido esse o mesmo sentimento que acometeu o gênio de Shakespeare quando ele escreveu o “Rei Lear”, sobretudo quando dramatiza: “Mesmo sem olhos o homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê como aquele juiz ofende aquele humilde criminoso. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o criminoso? Já viste um cão da roça ladrar pra um miserável? (...) e o pobre diabo correr do vira-lata? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. (...) Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa.” Vemos a toga brasileira nesse texto shakespeareano. Crimes cobertos com placas de ouro por quem em vez de fazer justiça, tem quebrado a lança de Thêmis. E repetimos com Shakespeare: “Até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo...”

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