quarta-feira, 1 de junho de 2022

O JUIZ E A LITERATURA

 

                                                                        



            Barros Alves

 

A literatura constitui um lugar de deleite, de entretenimento, mas também e muito especialmente de crítica e de denúncia. São inúmeras as obras de ficção da literatura pátria que fazem a crítica de costumes, ainda que intente tratar de temas para além da política e do social. Grandes romances da nossa literatura e obras de outros gêneros como o teatro e a poesia são marcos literários, cujos autores não descuidaram de tecer comentários de crítica política e/ou social usando o discurso direto ou por intermédio das personagens. Ontem como hoje, sob a democracia ou sob regimes autoritários que castram liberdades de expressão, escritores e poetas, eruditos e populares, não deixam por menos a mediocridade ou os abusos de seus governantes ou de figurões da sociedade. A ironia, a sátira e a crítica estão presentes em obras várias ao longo da história da nossa literatura, entre as quais se alteia a escritura do mulato Lima Barreto, cuja obra é um libelo crítico da sociedade brasileira, com suas idiossincrasias, hipocrisias e preconceitos de alto abaixo, para a direita e para a esquerda. A simples leitura de “Os Bruzundangas” confirma nossa afirmação.  Entre os poetas populares lembro o aviso do poeta popular Romano da Mãe d´Água também conhecido como Romano do Teixeira: “Sou Romano do Teixeira/ Fura pau, fura tijolo,/ Se mando a mão vejo a queda,/ Se mando o pé vejo o rolo,/ Na ponta da língua trago/ Noventa mil desaforo.”

            Neste momento em que o Brasil está submetido a notória e deletéria crise entre os poderes da República, na qual assoma o viés autoritário do Supremo Tribunal Federal, a desrespeitar flagrantemente as competências dos demais poderes, vale lembrar a crítica que se tem feito a juízes em importantes obras da literatura brasileira. Cito uma. Há um juiz na Suprema Corte brasileira que se assemelha sem tirar nem pôr ao Major Vidigal, personagem do romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida. Sem dificuldade o leitor identificará a execrável criatura que se identifica com o todopoderoso da ficção: “O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração: era o juiz que julgava e distribuía a pena e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas nem provas, nem razões, nem processo ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas.” O Major Miguel Nunes Vidigal existiu de fato. Manuel Antônio de Almeida assim o descreve: “Era o Vidigal um homem alto, muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar desse aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.” Resta saber se a cabeça de Vidigal que carecia de tino, também carecia de cabelos como a do seu similar dos dias atuais. Mário de Andrade diz que o Major Vidigal era “perverso e ditatorial nos castigos”. Às escondidas o povo do Rio de Janeiro fazia gozação com o “semideus” de outrora, recitando uma quadrinha que assim dizia: “Avistei o Vidigal,/E logo fiquei sem sangue;/ Se eu não sou tão ligeiro/O quati velho me lambe.”

            Na “Luneta Mágica”, de Joaquim Manuel de Macedo recolho a consciência de que um magistrado não pode ser venal, não pode julgar de modo diverso daquele que leve a justiça ao réu e não a vingança. Daí a crença na idoneidade dos julgadores como princípio “sine qua non” o ato de julgar se torna uma farsa das mais condenáveis, um vilipêndio. O romancista, em elaborada ironia, escreve: “Um juiz de direito não pode julgar de modo torto: ao menos tem a seu favor a presunção de direito, que em falta de todos os outros fundamentos é fundamento que supre todos os outros; para mim que não sei aprofundar as coisas, um juiz de direito é tão infalível na ciência do direito, como um padre na ciência do latim.” Com efeito, só um julgador moralmente dificiente emite julgamento torto. 

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