segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

"Soneto para guardar a memória do Rei Davi" - Por Barros Alves

                                                                                   


Davi, o ungido em quem Deus investe
E ao som da harpa do humilde pastor
No menor de Jessé, jovem cantor,
Viu toda a força da  beleza agreste.

Deu-lhe Deus a ousadia, o gesto forte,
E viu fidelidade, fé e ardor.
Deus viu um coração ao Seu dispor
Capaz de defendê-lo até à morte.

Caiu ferido pelo vil  pecado,
Manchou-se em culpa, castigou-lhe a dor.
Mas soube erguer-se, dócil e humilhado.

Cantor dos Salmos, algoz dos filisteus.
Davi dos Céus foi um predestinado,
Homem segundo o coração de Deus!


Davi, o extraordinário cantor dos Salmos, é conhecido popularmente como o jovem pastor que derrotou Golias, o  gigante filisteu, consoante a narrativa bíblica. Poucos sabem que o nome de  Davi consta do hagiológio católico romano. A memória de SÃO DAVI é lembrada no dia 16 de dezembro no calendário litúrgico da Igreja Católica.

Com efeito, Davi foi um predestinado. Deus o  escolheu para ser Rei de Israel (séc. X a.C.), enquanto apascentava as ovelhas, apesar de ser o menor dos filhos de Jessé. Deus não olha a aparência, mas o coração do homem. Guerreiro, profeta e poeta, foi um grande pecador. Porém, reconheceu seus erros e pediu perdão. Jesus nasceu da sua estirpe.  



"Em louvor de Santa Cristiana da Geórgia" - Por Barros Alves

                                                                                 


Num tempo hostil do Império em desatino,

Ergueste a fé qual lâmpada acesa,

Virgem no corpo e na alma fortaleza,

Que fez do amor a Cristo o seu destino.


Não te venceu o duro  aço e ferino,

Nem a prisão ou a sombra da impureza;

Em Cristo achaste a mais pura clareza,

A Luz do mundo escuro e peregrino.


Ó mártir pura, flor da Igreja antiga,

Teu sangue escrito em página sagrada

Fez do martírio a mais bela cantiga.


Rogai por nós, ó bem-aventurada,

Para que a fé, quando o temor nos siga,

Permaneça fiel, jamais negada!

domingo, 14 de dezembro de 2025

"Soneto místico para honrar São João da Cruz" - Por Barros Alves

                                                                             

Na noite escura a alma, em sede ardente,
Busca o Amado e assim  silenciosa
Nada possui, na solidão, silente...
Pois só no Nada a Luz se faz ditosa.

Por ásperos caminhos, mansamente,
Vai-se despindo a carne desejosa.
Morre o querer e nasce, incandescente,
O fogo puro em união gloriosa.

Ó verbo em dor, cantado no deserto!
Tua poesia é Cruz, é Claridade,
Sombra que guia ao Céu sempre mais perto.

Místico amor, de humana eternidade,
Ensina-nos que o Tudo está encoberto
No seio nu da  Obscuridade.


sábado, 13 de dezembro de 2025

"Em louvor de Santa Luzia" - Barros Alves

                                                                              

Na aurora antiga da fé que não vacila,
Luzia ergue o olhar, puro e constante,
Que guarda em si a chama fulgurante,
Onde a divina Luz mais rejubila.

Entre a história e a lenda o Amor cintila!
Sua fidelidade, firme e ardente,
Vence o tormento, o açoite, a dor pungente
E afirma a forte fé terna e tranqüila.

Diz a crença ancestral, a doce herança,
Que seus olhos, na oferta do martírio,
Tornaram-se luzeiros de esperança.

Luzia, Lúcia, Luz em sacrifício,
Protege nossa vista e a confiança,
E nos defende de todo malefício.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

"Sonetos para honrar Nossa Senhora de Guadalupe"

                                                                                 

Para o amigo e confrade hagiólogo José Luís Lira

"No Tepeyac"

Barros Alves

No Tepeyac, a luz do céu descia,
E o índio Diego a tanger a  lhama
Viu descendo do céu a Eterna Dama,
Mãe que consola a dor,  traz calmaria.

Seu manto, aurora azul que reluzia,
A ternura no olhar o amor inflama,
E o índio, humilde, em êxtase a proclama
A Mãe do Belo Amor, Mãe da Alegria!

“Filhinho meu”, diz Ela, em voz tão terna,
“Eu sou a Mãe que acolhe e que governa,
Porto de paz no chão da tua gente.”

No Tepeyac, em flor, a Luz que guia,
Surge na tilma a imagem que vigia
Da nossa América todo o continente.
 
 
"O Maltrapilho"

Barros Alves

No humilde manto azul todo  estrelado
Surge a Virgem da Luz, suave e pura.
A Rosa agreste, em divinal ternura,
Faz-se jardim por Ela iluminado.

Na colina sagrada, ajoelhado,
Juan Diego, semblante de candura,
A dor imensa do seu povo atura,
Povo sofrido e vilipendiado.

Mas, eis que ouve a vera voz da Amada,
Da Virgem Mãe de Deus, Imaculada,
Viva Esperança que consola o filho.

Ó Mãe que escuta o dolente clamor!
Dá-nos a fé e aquele  imenso Amor
Que deste a Juan Diego, o Maltrapilho.
 
 
OBS: Tepeyac é nome do monte, que atualmente pertence ao território da Cidade do México, onde, segundo a tradição, Nossa Senhora de Guadalupe apareceu ao índio Juan Diego, em 12 de dezembro de 1531. São Pio X declarou N. S. de Guadalupe Padroeira da América Latina em 1910. O índio Juan Diego foi elevado à glória dos altares em 31 de julho de 2002 pelo Papa São João Paulo II, durante cerimônia celebrada na Basílica de N. S. de Guadalupe, na Cidade do México.


 


segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

"Maria Imaculada, Aurora da Salvação" - Por Barros Alves

                                                                               

 
I
Ó Virgem santa, luz da redenção,
Que sobre as sombras ergues teu clarão,
Em ti cintila a graça mais sincera;
Desde o princípio foste a primavera
Que o Céu guardou com santa devoção.
Teu ser é lírio em pura elevação,
Olhar de paz que nunca desespera
E a humanidade toda a regenera.
Aurora imensa de eterna compaixão,
Mãe escolhida para a Encarnação.
 
II
Ó doce Esposa do divino Amor,
Em ti não vibra mágoa nem torpor,
Pois desde o seio foste iluminada.
Cheia de graça, rosa imaculada,
Em quem descansa o Altíssimo Senhor.
Do Céu colheste o etéreo resplendor
Que ao mundo oferta a aurora desejada.
E a tua voz, tão meiga e moderada,
Ecoa firme em pura obediência,
Selando o “fiat” da divina Essência.
 
III
Humilde Serva em santa retidão,
Que ao mensageiro abriste o coração
Sem hesitar na escolha soberana,
Tua doçura, alvíssima e humana
Firmou no mundo a luz da Salvação.
E o Filho Eterno, na concepção,
Tomou em ti morada não profana,
No teu silêncio a graça se engalana,
E o Verbo, eterno e pleno de ternura,
Veio encarnar-se na tua alma pura.
 
IV
Ó Mãe bendita, estrela da manhã,
Que à fé conduz na senda mais cristã.
Em ti começa o brilho redentor,
Pois Cristo nasce envolto em teu amor,
Que ao mundo entrega a paz que nunca engana.
Toda a bondade do teu ser emana,
E luz que vence a morte e o temor.
E quem te invoca com total teu fervor
Encontra abrigo em tua proteção,
Aurora excelsa da humana redenção!
 
V
Ó Mãe Imaculada, Mãe de Deus,
Igual ao Cristo somos filhos Teus,
Rogamos tua santa intercessão
Junto ao Teu Filho, pela salvação
De toda a humanidade pecadora,
Porque és, sim, a Mãe Co-redentora.
Maria Imaculada, a Escolhida,
Ó santa sem pecado concebida!
Rogai por mim, um pobre pecador,
Ó Mãe querida, Mãe do Belo Amor!

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

MOMBAÇA, HOMÉRICO POEMA - Por Barros Alves

                                                                                  

(Para Fernando Cruz, historiador)


No ardor do sol que abraça o chão crestado,
Se ergue Mombaça, a  altiva sertaneja.
A fronte erguida em face da peleja,
Berço de um povo forte e abençoado.

O filho desta terra é renovado
Pela bravura antiga que viceja
Na fé, na luta ingente e na dureza,
E molda firme um caráter  bem forjado.

Velha cidade! És canto de ternura,
Refúgio de coragem e esperança,
Chama que arde e que jamais se apaga.

A tua história de bravos me assegura
Que és tempestade e és também bonança,
Homérico poema é tua saga!
 
 
Fortaleza, 27 de novembro de 2025, nos 174 anos de fundação de Mombaça, meu berço natal. 


domingo, 23 de novembro de 2025

"A Igrejinha do Monte" - Por Barros Alves

                                                                                 


No alto monte vê-se a singela ermida,
Tranquila, esguia, em luz transfigurada,
Como uma prece ao céu a torre erguida,
Guardando a fé do povo, iluminada!
 
A única torre, graciosa, erguida,
Beija o infinito, Luz imaculada
A apontar Deus, que acolhe a alma ferida,
Na paz sutil da noite abençoada.
 
O vento entoa um canto em tom bendito,
Ecoa o sino em místico convite
Ao coração cansado e desvalido.
 
E a Igrejinha, farol do céu que eu fito,
Ao Canindé implora que recite
Um chamamento ao povo combalido.


"Um novo ciclo para as Letras, as Artes e a Memória de Canindé" - Por Barros Alves

                                                                              

Canindé, terra marcada pela fé, pela cultura popular e pela força simbólica de São Francisco das Chagas, assiste, neste momento, ao renascer de uma de suas mais significativas instituições culturais: a Academia Canindeense de Letras, Artes e Memória – ACLAME. Depois de um período de previdente pausa, motivada pela pandemia e agravada pela perda irreparável de alguns de seus líderes e fundadores, a entidade retorna vigorosa, renovada em seus quadros e em seu propósito. É mais do que uma retomada: é um ato de resistência cultural, de compromisso com a cidade e de afirmação do valor da memória. Também uma homenagem ao idealizador e um dos fundadores da Arcádia e primeiro presidente, o jornalista, radialista e escritor Tonico Marreiro.

Os "aclamados" passaram cerca de 7 anos inativos, mas agora novamente a postos, darão prosseguimento aos trabalhos em defesa da cultura da terra de São Francisco das Chagas; terra de nomes exponenciais da nossa literatura, como é o caso de Cruz Filho, segundo Príncipe dos Poetas Cearenses; e de Jósa Magalhães, médico, folclorista e escritor de nomeada. À reunião compareceram importantes nomes do cenário cultural de Canindé: Chico Walter, Ana Célia Gomes, Xico Luiz, Ana Claudia Crisóstomo, Chico Carloto, Sargento Freitas, Pedro Paulo Paulino, Jota Batista, Itami de Moraes, Augusto Cesar Magalhães, Graça Secundino, Vera Secundino, Celso Góis Almeida, Arlando Marques e Marlúcia Freitas. Sinto-me deveras honrado em integrar esse seleto grupo e de ter sido convidado para a reabertura do sodalício, que será dirigido pela professora, pesquisadora e escritora Ana Célia Gomes.

                                                                                 


 

A ACLAME sempre se destacou pela amplitude de seu ideal. Ela nasceu para celebrar as letras, acolher as artes em suas múltiplas expressões e preservar o vasto patrimônio histórico-cultural de um município singular. Canindé não é apenas uma cidade do interior cearense; é um dos grandes centros espirituais do Brasil, reconhecido internacionalmente como o segundo mais importante santuário franciscano, só atrás de Assis, na Itália. Aqui, a devoção a São Francisco das Chagas molda a identidade local, inspira a religiosidade nordestina e atrai, todos os anos, milhares de romeiros que carregam consigo histórias, esperanças e tradições.

Nesse contexto, a presença ativa de uma academia como a ACLAME é fundamental. Ela funciona como guardiã da memória e promotora da criação; como ponte entre o passado e o futuro; como espaço de circulação de saberes e valorização dos talentos locais. Sua atuação contribui para que a cultura não se torne apenas um ornamento, mas continue a ser um fundamento vivo da sociedade canindeense.

O retorno da ACLAME, agora com novos membros, amplia horizontes. O ingresso de novas vozes, novas sensibilidades e novas energias permite que a instituição se fortaleça e se adapte aos desafios contemporâneos sem perder o vínculo com seus princípios originais. É símbolo de continuidade, mas também de reinvenção. Cada cadeira ocupada representa a responsabilidade de manter acesa a chama da intelectualidade e da memória coletiva, tão necessárias num tempo em que o efêmero ameaça obscurecer o que é perene.

Saudar o ressurgimento da ACLAME é, portanto, saudar Canindé em sua totalidade: sua história, sua arte, sua religiosidade, sua vocação para acolher e preservar. É celebrar o retorno de um espaço que faz da palavra instrumento de construção, da arte veículo de identidade e da memória um patrimônio que pertence a todos.

Que este novo ciclo seja fecundo.

Que a ACLAME continue a honrar seus mestres e a inspirar seus novos membros.

E que Canindé, sob o olhar fraterno e  as bênçãos de São Francisco das Chagas, veja florescer, mais uma vez, a força criadora de seu povo.

                                                                                 


 

 

 

"Sonetos para São Francisco das Chagas de Canindé" - Por Barros Alves

                                                                               

No templo santo se ergue a fé candente.

Francisco, acolhedor, olha o romeiro 

Que vem de longe fiado no Cordeiro

E traz no peito a dor de um ser carente.

 

Em Canindé, contrito e reverente

Vê em Francisco o abrigo derradeiro,

Aflito, aquele pobre caminheiro,

Busca no Santo a luz resplandecente.

 

"Ex votos" falam mudos da esperança 

De graças alcançadas na bonança 

Que o Santo bom inspira ao interceder.

 

E o coração feliz, enfim, descansa,

Pois sente a fé trazer-lhe a confiança 

No Amor de Deus que aponta o renascer.

 

São Francisco das Chagas de Canindé - II


Pobrezinho de Assis, luz peregrina,

Que em Canindé resplende em devoção,

Atrais romeiros das urbes, do sertão,

Cheios de imensa fé que não declina.

 

De toda a parte a estrada se ilumina.

Passos simples, munidos de oração;

No teu altar, em súplice gratidão,

Milhares rogam pela Luz divina.

 

"Ex votos" narram dores superadas,

Milagres que em silêncio foram dados,

Gestos de graça em Cristo recebidos.

 

E tu, Francisco, em chagas consagrado,

Acolhes corações tão humilhados,

Fazendo o céu tocar os desvalidos.

 

São Francisco das Chagas - III


Francisco, caminheiro peregrino

Que carrega no peito mil paixões,

Paladino dos pobres. Nordestino

Que distribui amor pelos sertões.

 

Ouve os queixumes dessas multidões

De prófugos famintos sem destino...

No doce olhar profundas emoções,

Sentimentos de santo e de divino.

 

Andarilho de Deus, santo e poeta,

Lembra o Cristo, o maior dos galileus,

Um rebelde de Amor, alma inquieta...

 

Se fôssemos cristãos menos ateus

Cumpriríamos de Francisco a meta:

Amar ao outro como se ama a Deus!

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Cordel e Negritude sob o olhar do jornalista Alberto Perdigão - Por Barros Alves

                                                                               

            Hoje, 20 de novembro, comemora-se no Brasil o Dia da Consciência Negra. A data carrega pertinência para que tratemos do assunto em área pouco explorada, qual seja a análise crítico-literária de aspectos da literatura de cordel. Em face disto é que trago à baila este breve comentário sobre livro de autoria do jornalista Alberto Perdigão, uma coletânea de artigos subordinados ao título de “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel.” De logo, deixo claro ao leitor que eu e o autor da obra estamos politicamente em lados diametralmente opostos. O mesmo, quero crer, não ocorre quanto às nossas visões estéticas da literatura, em especial da literatura de cordel, uma das mais belas e importantes manifestações do cancioneiro popular nordestino, que herdamos das nossas raízes ibéricas. Por necessário, no caso dessa apreciação de obra da lavra do competente jornalista, vale salientar o alinhamento que tenho com o pensamento de Tristão de Athayde quanto à crítica literária, que noutro pé e sobre outro tema escreveu frase que contém verdade universal: “A verdadeira atitude religiosa exige do crítico, acima de tudo, o respeito pela verdade. Não a ‘verdade’ revelada por Deus, pois esta nada tem com as qualidades ou defeitos da literatura a ser avaliada. Mas, a verdade revelada pela própria obra e por seu autor.”

A literatura de cordel, tantas vezes vista apenas como folclore, ganha nova luz no livro “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel”, de Alberto Perdigão. Nessa coletânea de ensaios breves, o jornalista e pesquisador cearense reconstrói a presença histórica da negritude no cordel e demonstra como o folheto pode atuar enquanto mídia popular de resistência, memória e afirmação identitária. A obra, que dialoga com conceitos da descolonialidade e da folkcomunicação, amplia significativamente o entendimento do cordel como instrumento político. Perdigão parte de uma premissa ousada: o cordel não é apenas poesia narrativa, mas também um meio de comunicação alternativo capaz de expressar vozes historicamente silenciadas. A análise desconstrói a ideia de que o cordel seria, por essência, reprodutor de estereótipos raciais. Pelo contrário, o autor evidencia uma tradição de folhetos que exaltam personagens negras, denunciam violências e reinterpretam episódios como escravidão, abolição e lutas contemporâneas.

            Cada capítulo funciona como um estudo independente, mas todos convergem para uma tese comum: a de que o cordel é um veículo privilegiado para narrar a experiência negra sob a perspectiva popular. A combinação entre análise textual, contextualização histórica e referenciais teóricos contemporâneos dá ao livro densidade acadêmica e Método rigoroso, sem perder o vínculo com a linguagem e as práticas da cultura do cordel.

Como toda obra de recorte temático, a seleção de folhetos pode privilegiar exemplos que reforçam a tese central. Há ainda o desafio de transpor a complexidade teórica da descolonialidade para o universo dos cordelistas tradicionais, que nem sempre dialogam com a academia. Mesmo assim, a obra se sustenta pelo vigor das análises e pela contribuição inédita ao campo da comunicação popular e dos estudos raciais.

            Ao sistematizar a presença negra no cordel, Perdigão não apenas ilumina uma dimensão pouco estudada dessa tradição literária, como também oferece material valioso para professores, pesquisadores e poetas populares. O livro sugere que o cordel, divulgado e vendido nas feiras, nas praças, nas escolas, nas redes, em seminários e exposições acadêmicas, continua sendo um espaço vivo de disputa simbólica e construção de cidadania.

            Um dos méritos mais significativos da obra de Perdigão é a defesa do cordel como fonte histórica e documental. Ao analisar folhetos escritos por poetas de diferentes épocas, o autor mostra que o cordel registra, à sua maneira, os sentimentos coletivos de comunidades negras que nem sempre aparecem nas versões oficiais da história. Nos folhetos sobre a escravidão, por exemplo, é possível identificar tanto as dores quanto as estratégias de resistência presentes nas narrativas populares. Esse caráter documental coloca a literatura de cordel lado a lado com outras formas de arquivo da memória negra, como músicas, oralidades, crônicas e tradições religiosas; mas com um diferencial: a circulação ampla, barata e imediata dos folhetos. Assim, o cordel funciona como um “jornal do povo”, sensível às questões raciais muito antes de elas se tornarem pauta das grandes redações. Perdigão destaca que personagens como rainhas africanas, guerreiros, líderes quilombolas e heroínas de matriz afro-brasileira estão presentes em muitos folhetos. Essa presença, ainda que reduzida diante da imensidão da produção cordelística, é simbólica: ela reequilibra imaginários e contribui para a construção de orgulho identitário. Ao tratar dessas personagens, o autor evidencia a capacidade do cordel de ressignificar papéis sociais. Em vez de reproduzir a visão eurocêntrica predominante em parte do cordel clássico, ele mostra como muitos poetas populares reelaboraram a história, devolvendo protagonismo às figuras negras e atribuindo-lhes dignidade e grandeza.

            Outro ponto forte do livro é sua utilidade prática no campo educacional. Em tempos em que a discussão sobre educação antirracista ganha força, especialmente a partir da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira pela Lei 10.639/03, a obra de Perdigão oferece material abundante para escolas, professores e gestores culturais. Os folhetos analisados trazem histórias acessíveis, linguagem popular e forte apelo visual, elementos que favorecem o diálogo com estudantes. Ao mesmo tempo, a leitura crítica proposta pelo autor permite que educadores utilizem o cordel como instrumento pedagógico para tratar racismo estrutural, identidade, memória e resistência.

            Um dos aspectos mais instigantes do livro é a ponte que Perdigão estabelece entre o mundo acadêmico e o universo popular. O cordel, muitas vezes relegado a um folclorismo superficial, é tratado aqui como objeto sério de estudo, sem que isso reduza sua espontaneidade. A pesquisa rigorosa convive com o reconhecimento da oralidade, da sabedoria popular e do improviso dos poetas. Esse equilíbrio, nem sempre presente na crítica acadêmica, reforça a credibilidade do autor e amplia o alcance da obra, que pode ser lida tanto por pesquisadores quanto por cordelistas, jornalistas, agentes comunitários e leitores interessados na cultura brasileira. É fácil constatar a leveza da escritura jornalística no texto de Perdigão, que para o bem do leitor, se desveste da estéril linguagem academicista.

A maior contribuição de “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” talvez seja sua capacidade de abrir caminhos. A obra sugere novos recortes temáticos, novas formas de leitura e novos campos de pesquisa. Ao demonstrar que a negritude está viva e atuante dentro do cordel, Perdigão convida outros estudiosos a investigar gênero, religiosidade, política, direitos humanos, economia e até questões ambientais por meio dos folhetos. Além disso, o livro encoraja poetas e editoras de cordel a explorarem com mais força temas ligados à identidade negra, favorecendo a produção contemporânea e fortalecendo discursos de pertencimento. Apesar de tratar de temas densos, tais como racismo, descolonialidade, entre outros, Perdigão escreve com clareza jornalística. Ele evita jargões desnecessários e conduz o leitor com didatismo, mesmo quando o assunto exige aprofundamento teórico. O texto é direto, sem perder a elegância; firme, sem perder a sensibilidade. A opção pela estrutura em artigos independentes permite diversidade de abordagens, mas também dá ritmo ao livro: cada capítulo abre uma nova janela para temas que vão da representação de heroínas negras à análise de folhetos que narram a violação de direitos humanos. A maturidade intelectual do autor se revela justamente nessa capacidade de fazer pontes: entre poesia e política, entre o popular e o acadêmico, entre tradição e contemporaneidade.

Num momento em que o cordel experimenta revitalização, impulsionado por coletivos, feiras culturais, editais e pelo acesso digital, o livro de Perdigão chega como obra de referência. Ele responde a uma demanda contemporânea, qual seja a de compreender como a cultura popular aborda questões raciais num país ainda marcado pelo racismo estrutural. A crescente presença de mulheres cordelistas, poetas negros, jovens autores e coletivos periféricos demonstra que o cordel está se diversificando. A obra de Perdigão contribui para isso ao oferecer legitimidade acadêmica e visibilidade crítica a essa produção. Hoje, quando se fala em cordel e negritude, a obra de Alberto Perdigão já se coloca como referência obrigatória, tanto para pesquisadores quanto para militantes do movimento negro e para poetas populares. “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” é, em última instância, um gesto de coragem intelectual e de reparação cultural. Ao iluminar um território onde por séculos a presença negra foi decisiva, mas nem sempre reconhecida, Alberto Perdigão devolve ao cordel a inteireza de sua própria história. Seu livro recorda que nenhuma tradição popular é neutra, mas todas carregam disputas, silêncios e heranças profundas. Perdigão desnaturaliza estereótipos, amplia horizontes críticos e demonstra que o cordel, quando visto sem véus, é também espaço de afirmação, dignidade e memória. Trata-se de obra que não apenas enriquece os estudos sobre a cultura nordestina, mas também convoca leitores, pesquisadores e poetas a revisitarem o passado com honestidade e a alimentarem, no presente, uma tradição mais justa, plural e fiel às vozes que a construíram. Enfim, “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” é um livro necessário para quem deseja compreender não apenas o cordel, mas o próprio Brasil que pulsa nas ruas e no coração do povo. E confirma Alberto Perdigão como uma das vozes mais importantes da pesquisa sobre cordel na atualidade.

 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

EU CREIO - Por Barros Alves

                                                                             
Creio no Pai, princípio eterno e forte,
Que fez do nada o mundo em harmonia;
Creio no Filho, luz que me alumia
E vence trevas, dor, pecado e morte.
 
Creio no Espírito! Que ele nos conforte,
Pois é sopro divino em sinfonia,
Que a Igreja una e santa rege e guia,
E nele a graça guarda o rumo e o norte.
 
Creio no Amor que salva e que proclama
Na comunhão dos santos peregrinos,
Todo o perdão que nos renova a chama.
 
Creio na vida além dos vãos destinos,
Onde a promessa d'Aquele que mais ama
Nos salva e eleva aos êxtases divinos.

AVE, MARIA! - Por Barros Alves

                                                                             

Ave Maria, cheia de ternura!
De graça plena és lâmpada acendida,
És Mãe do Belo Amor,  Fonte da Vida,
És Tu a mais divina Formosura.

Bendita és Tu, sagrada criatura!
Pois Teu ventre acolheu a Luz da vida.
Do Deus Supremo foste a escolhida,
Desde a concepção és toda pura.

Santa Maria, Mãe da Paz celeste,
Rogai por nós, que somos tão pequenos,
Na noite humana em que o temor investe.

Atende, ó Virgem Mãe, nossos acenos!
Sê tu o abrigo em que o fiel se aquece,
Mãe do Amor Santo, amparo dos serenos.


PAI NOSSO - Por Barros Alves

                                                                            

Pai Nosso, que governa o firmamento,
Vosso nome seja santificado!
Que venha o vosso Reino, ó Pai Amado,
Vossa vontade seja o meu  intento.

Aqui na terra e em todo momento,
Também no Céu ressoe o Amor paterno.
Dai-nos o pão  da vida, ó Pai Eterno,
Que nutre o corpo e afasta o desalento.

Perdoai nossas faltas dia a dia,
Para que o outro seja perdoado 
E reine entre os irmãos paz e alegria.

Livrai-nos do que é mal e do malvado,
Guiai-nos pela senda que irradia
A paz do vosso Amor iluminado.


"Os 'ismos' estéreis e o esgarçamento do Cristianismo verdadeiro" - Por Barros Alves

                                                                              

A modernidade vive de "ismos": feminismo, ambientalismo, neoanimismo, neopanteísmo, neoliberalismo, neosocialismo, evangelicalismo e tantos outros rótulos de ocasião que prometem sentido, redenção, emancipação e identidade. São doutrinas que se afirmam como soluções totais, mas que, vistas à luz do Cristianismo histórico, revelam-se modismos estéreis, fragmentários, contraditórios entre si e, muitas vezes, incompatíveis com as premissas fundamentais da fé cristã. Os grandes mestres do pensamento cristão jamais se renderam a sistemas fechados. Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”, advertia contra toda tentativa humana de construir “cidades terrenas” absolutizadas, elevadas ao status de salvação: qualquer ideologia que pretenda substituir Deus por si mesma está, desde a raiz, corrompida pelo orgulho. Do mesmo modo, Santo Tomás de Aquino reconhecia que toda verdade tem sua dignidade, mas recusava integralismos que absolutizam partes da realidade em detrimento do todo criado e ordenado por Deus. Assim, o Cristianismo clássico não é um “ismo” entre “ismos” — é sua antítese.

O feminismo contemporâneo, por exemplo, sobretudo em suas ondas mais recentes, abandona qualquer sentido de complementaridade e desenraizamento metafísico da pessoa humana. Em nome da autonomia absoluta, afirma uma antropologia que nega a ordem natural e as distinções criadas por Deus. Como observou C. S. Lewis, quando o ser humano declara independência das realidades objetivas - morais, naturais ou espirituais -, ele “serra o galho no qual está sentado” (“A Abolição do Homem”).

O evangelicalismo, em alguns de seus desdobramentos mais superficiais e mercadológicos, incorre no mesmo erro ao reduzir o Cristianismo a performance emocional, slogans de autoajuda e triunfalismo sem cruz. Chesterton, em “Hereges”, dizia que o mundo moderno sofre não do excesso, mas da falta de dogmas; e quando se abandonam dogmas verdadeiros, surgem dogmas falsos, versões diluídas e caprichosas da fé.

De igual modo, para qualquer um que conhece os postulados em que se assentam o Cristianismo ao longo dos tempos, o ambientalismo, neoanimismo, neopanteísmo são facetas de um mundo neopagão, ou seja, um mundo em que acha normal a criação sem o Criador. O debate ambiental é legítimo e necessário. Todavia, o ambientalismo ideológico converte-se rapidamente em religião substituta, onde a natureza ocupa o lugar de Deus, e o ser humano torna-se intruso culpado. O problema não está no cuidado, mas na sacralização da criatura. Essa postura leva ao neoanimismo e ao neopanteísmo, modas espirituais que reeditam os erros antigos dos quais os Padres da Igreja advertiam. Para Agostinho, confundir Deus com o mundo é “trocar o Criador pela criatura”; para Tomás de Aquino, é negar o princípio da causa primeira transcendente.

Georges Bernanos denunciava o “panteísmo sentimental” como fuga da responsabilidade moral; R. R. Tolkien, o genial autor de “O Senhor dos Anéis”, embora amante da natureza, sabia distinguir com clareza a criatura e o Criador. Sua Terra-média jamais se confunde com divindades naturalistas. Há, portanto, uma contradição essencial: o Cristianismo vê a criação como dom; os “ismos” naturistas a vêem como divindade. Onde o Cristianismo vê a mão da Providência, eles vêem destino cósmico; onde o Cristianismo vê responsabilidade, eles vêem culpa existencial.

Quanto ao socialismo e ao neoliberalismo, não é difícil identificar que embora opostos na superfície, partilham o mesmo erro espiritual: a redução da pessoa humana a agente econômico, movido por estruturas materiais ou desejos individuais. Para o Cristianismo tradicional, a dignidade humana precede qualquer sistema e não pode ser derivada da economia. Chesterton e Belloc, ao denunciarem o capitalismo desenfreado e o coletivismo socialista, insistiam que ambas as ideologias mecanizam o homem e substituem virtudes por engrenagens sociais. Da mesma forma, Francis Schaeffer, em “Como Viveremos?”, lembra que qualquer sociedade que rejeita seus fundamentos espirituais termina buscando no Estado, no mercado ou no coletivo, aquilo que só Deus pode oferecer: sentido, moralidade, esperança. Portanto, ambas as ideologias falham porque tratam o ser humano como número, enquanto o Cristianismo o trata como pessoa.

O Cristianismo histórico atravessou impérios, revoluções, filosofias e modas intelectuais. É significativo que os grandes autores cristãos – Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, G. K. Chesterton, C. S. Lewis, R. R. Tolkien, Georges Bernanos, Francis Schaeffer, entre outros - nunca tenham buscado adaptar a fé às ideologias, mas julgar as ideologias pela fé. Esses pensadores convergem em três convicções fundamentais: 1. A verdade é objetiva, e não fabricada por agendas humanas; 2. A pessoa humana possui dignidade inalienável, enraizada em Deus, não em sistemas sociais; 3. Nenhum “ismo” é capaz de oferecer salvação, sentido ou moralidade estável. Por isso o Cristianismo é incompreensível para os modismos: o Cristianismo exige conversão, não adesão superficial; sacrifício, não slogans; transcendência, não ideologia.

Os “ismos” da modernidade, o feminismo radical, o ambientalismo militante, o neoanimismo, o neopanteísmo, o neoliberalismo, o neosocialismo, os evangelicalismos estéticos, travestem-se de bondosos e simpáticos humanismos, mas não passam de neopaganismos arrogantes. Ainda bem que são fenômenos de curta duração e longa presunção. Oferecem linguagem moral, mas sem moral; prometem transcendência, mas sem Deus; pregam justiça, mas sem verdade objetiva. O Cristianismo, ao contrário, não é moda: é fundamento, tradição viva, revelação, raiz de civilização. É por isso que tantas ideologias modernas se chocam frontalmente com a fé: porque, no fundo, competem com ela, disputam sua autoridade, seu espaço e sua promessa de salvação. Como dizia C. S. Lewis, “o Cristianismo, se falso, não tem importância. Se verdadeiro, é de importância infinita. A única coisa impossível é considerá-lo moderadamente importante”. Os “ismos” modernos tentam ser essa terceira via. Porém, terminam como sombras passageiras diante da perenidade da fé cristã. 

 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Ainda sobre a Nota Doutrinal "Mater Populi Fidelis" - Por Barros Alves

                                                                                  


Retorno ao tema que foi objeto de artigo de minha autoria, publicado neste espaço (9.11), e que contém considerações sobre a "Nota doutrinal" do Papa Leão XIV, a "Mater Populi Fidelis", publicada em 4 de novembro do corrente ano. Essa manifestação papal continua sendo objeto de análises e comentários de membros do magistério da Igreja e leigos; tanto de progressistas quanto de conservadores, tradicionalistas etc. Há, portanto, uma longa tradição teológica católica sobre os títulos de Co-redentora e Mediadora, atribuídos à Maria. A Igreja há séculos aceita e estimula uma ampla titulação de nobreza à Mãe do Salvador. A mudança brusca dessa posição de extrema piedade mariana que é uma característica católica, causa inevitáveis incômodos na Barca de Pedro.

Ao limitar o uso de “Co-redentora”, a Nota quer evitar interpretações ambíguas, segundo as quais Maria teria um papel igual ou paralelo ao de Cristo na Redenção. Isso responde a um cuidado teológico que já aparece em documentos como a  "Lumen Gentium", 62, que fala da “mediação subordinada” de Maria, jamais competindo com a única mediação de Cristo. Ao reforçar essa distinção, a Nota preserva o núcleo da fé cristã que determina ser a redenção obra exclusiva do Filho de Deus.

Os títulos marianos, sobretudo “Co-redentora”, têm sido motivo de inquietação para cristãos de outras tradições. A limitação proposta por Leão XIV pode favorecer o diálogo ecumênico, pois retoma uma linguagem mais bíblica e patrística, menos suscetível a interpretações exageradas.

Lembre-se, por necessário,  que nas últimas décadas, alguns setores devocionais ampliaram o vocabulário mariano com entusiasmo, mas sem precisão teológica. A Nota ajuda a reorientar a piedade popular rumo a expressões que melhor correspondem à tradição e ao magistério seguro. Destarte,  ao colocar limites, não nega a especial cooperação de Maria, mas lembra que a Igreja nunca definiu dogmaticamente o título de “Co-redentora”, e que papas recentes (como São João Paulo II, Bento XVI e Francisco) foram prudentes quanto à formulação dogmática desse tema. Assim, o documento reforça uma linha magisterial contínua.

Todavia, a Nota logo suscitou a manifestação de conservadores e tradicionalistas, que apresentam argumentos críticos e/ou preocupações em face do documento. Alguns bispos, teólogos e devotos entendem a Nota como um recuo ou empobrecimento da linguagem mariana. Maria possui, de fato, uma participação única na economia da salvação, desde o "Fiat"  até o Calvário. Limitar os títulos pode ser visto pelos milhões de marianos no mundo inteiro como subestimar essa singularidade.

Ao desestimular explicitamente o uso de certos títulos, a Nota pode ser entendida como um obstáculo ao aprofundamento doutrinário. A mariologia, ao longo dos séculos, sempre avançou por meio de novos conceitos e expressões. Um freio excessivo poderia engessar o desenvolvimento teológico futuro. A devoção mariana é visceral na vida espiritual de milhões de católicos. Muitos utilizam espontaneamente os títulos “Mediadora” e “Co-redentora” em um sentido afetivo e não técnico. Ao impor limites, o documento corre o risco de gerar incompreensão, resistência ou sensação de afastamento entre magistério e "sensus fidei".

Dom Athanasius Schneyder, bispo armeniano que já morou no Brasil, um dos líderes conservadores, crítico firme do pontificado de Francisco, já manifestou discordância da Nota. Ele escreveu: "...não se pode afirmar que o Magistério Ordinário, juntamente com os Santos e os Doutores da Igreja ao longo de tantos séculos, tenha desviado os fiéis através de um uso consistentemente inadequado destes títulos marianos. Além disso, ao longo dos tempos, essa doutrina mariana e o uso desses títulos também expressaram o 'sensus fidei', ou seja, o senso de fé dos fiéis." Para assegurar legitimidade à sua argumentação, Dom Athanasius cita vários documentos papais e doutores da Igreja, lembrando que já nos primórdios do Cristianismo, "Santo Irineu, um Doutor da Igreja do século II, lançou as bases essenciais para as doutrinas marianas de Co-redenção e Mediação, que mais tarde seriam desenvolvidas por outros Doutores da Igreja e pelo Magistério Ordinário dos Romanos Pontífices."  E citando Santo Irineu: "Maria, prestando obediência, tornou-se a causa da salvação, tanto para si mesma como para toda a raça humana."

Havemos de observar, no entanto, que mesmo limitando o uso dos títulos, permanece a pergunta: em que medida exatamente eles podem ser empregados? O documento pode não eliminar completamente ambiguidades pastorais, já que a teologia mariana tradicional permite nuances. Se a Nota não for suficientemente clara, torna-se fonte de debate em vez de solução. É isso que já está ocorrendo. 

Mas,  sendo a Igreja Católica "Mater et Magistra", Mãe e Mestra, não se pode fugir da sua autoridade. Sem se abstrair jamais da veneração à Maria, Santíssima Virgem, Mãe de Deus (Theotokos).

Vale, por fim, um exemplo de fidelidade citado pelo Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI) no livro "Lembranças da Minha Vida", pág. 68. Eis o relato sobre a postura do padre e teólogo,  amigo de Ratzinger: "Gotlieb Söhngen, por volta de 1949, declarou-se fervorosamente contra a possibilidade do dogma (Assunção de Maria). Então,  o evangélico Edmund Schlink, professor de Teologia Sistemática em Heidelberg, perguntou-lhe, bem pessoalmente: 'Mas, o que fará o senhor se o dogma sair assim mesmo? O senhor, então, não deveria se afastar da Igreja Católica?' Depois de um momento de reflexão, Söhngen respondeu: 'Se o dogma sair, eu me lembrarei que a Igreja é mais sábia do que eu; e hei de confiar mais nela do que na minha própria erudição.' O dogma saiu em 1⁰ de novembro de 1950, decretado pelo Papa Pio XII e publicado por intermédio da Constituição Apostólica "Munificentissimus Deus". Quer dizer, "Roma locuta, causa finita." A Igreja falou, estamos conversados, como diz o povo.

 

 


sábado, 15 de novembro de 2025

A queda da monarquia e o preço da instabilidade republicana no Brasil - Por Barros Alves

                                                                               

O golpe militar de 15 de novembro de 1889 permanece, sob qualquer perspectiva histórica séria, como uma ruptura abrupta, ilegítima e institucionalmente desastrosa. Não houve plebiscito, consulta pública, debate parlamentar, movimento popular ou revisão constitucional: o regime monárquico brasileiro foi derrubado por um ato de força militar, sem respaldo jurídico, em total desrespeito ao art. 98 da Constituição de 1824, que previa que somente a própria Nação poderia alterar a forma de governo, jamais um movimento liderado por meia dúzia de açodados positivistas conluiados com traidores que se esconderam atrás da farda do glorioso Exército brasileiro.

Dom Pedro II, deposto sem resistência para evitar derramamento de sangue, não era um tirano; era, segundo testemunhas brasileiras e estrangeiras, um dos chefes de Estado mais respeitados do século XIX, que gozava da admiração internacional, em razão do seu saber, da sua erudição, da sua magnanimidade e, sobretudo, do seu caráter político, um Estadista que estava conduzindo o Brasil a um patamar de honra e grandeza no concerto das poderosas nações da época. O imperador D. Pedro II era visto de fato como uma das mais ilustres personalidades no mundo daquele tempo. Senão vejamos o conceito que dele faziam nomes da mais elevada estirpe europeia. Victor Hugo, o insuperável romancista francês, autor de “Os Miseráveis”, afirma em carta ao Imperador: “O senhor é um monarca verdadeiramente republicano.” O cientista Louis Pasteur, em discurso de agradecimento ao Pedro II amigo da ciência, no Instituto Pasteur, declara: “Dom Pedro II honra a ciência com seu apoio e sua inteligência.” O historiador e filósofo Ernesto Renan, um dos mais sábios franceses do século XIX, descreveu o imperador do Brasil como “Um dos homens mais cultos de seu tempo.” Alexandre Dumas Filho, o célebre romancista francês, autor de “A Dama das Camélias”, ao conhecer D. Pedro II, sentenciou: “Não recebi aqui um soberano, mas um sábio.” O genial e respeitabilíssimo Richard Wagner, comensal de reis e príncipes da Europa, após encontro com Pedro II, registrou que jamais havia conhecido “um imperador tão instruído e musicalmente culto”.

                                                           


 

De igual modo, grandes nomes da nossa história-pátria se manifestaram com grande respeito e admiração pelo Imperador Pedro II, apesar de alguns deles haverem contribuído para a queda da monarquia do Brasil. Joaquim Nabuco, político e diplomata de inegáveis méritos, escreveu na autobiografia “Minha Formação”, que “a Monarquia caiu não porque fosse fraca, mas porque era forte demais para certas ambições.” O alforriado José do Patrocínio, que se fez jornalista e orador popular, embora republicano, lamentou o golpe:
“Não derrubamos um tirano, mas exilamos a virtude.” E outro grande sábio brasileiro, o Barão do Rio Branco, insuperável diplomata, declarou que a monarquia do Brasil era “o cimento da unidade nacional”.

O liberal Rui Barbosa, um acerbo crítico do regime, que lutou pela implantação da República no Brasil, confessou em 1889: “A Monarquia, com todos os seus defeitos, nos deu ordem, estabilidade e prestígio externo.” Na biografia de Rui Barbosa, escrita por Luís Viana Filho, o autor diz que ao ver a família real embarcar para o exílio, expulsa sem o menor respeito, Rui Barbosa chorou. Como homem experiente que era, ali prenunciou as tempestades que viriam por parte de uma República que nada teria de republicana. Pouco tempo depois Rui foi vítima da ditadura de 1893, imposta pelas baionetas a serviço de Floriano Peixoto. Aí foi Rui quem seguiu para o exílio. Ao retornar se elegeu senador e em 1914, em discurso no Senado teria pronunciado a famosa frase que é o retrato do em que se transformou a República brasileira: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra; de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.” Alguns autores, sem fontes seguras, afirmam que a conclusão dessa frase soa como um lamento cheio de remorso. Rui teria dito: “Tal é a República que, infelizmente, eu ajudei a implantar no Brasil.” O fato é que daquele tempo a esta parte, sob a República mal nascida, continuam a triunfar as nulidades, a prosperar a desonra, a crescer a injustiça. Presentemente, com o beneplácito da mais alta Corte do País, como que a dar razão ao velho Rui, segundo o qual a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Nenhum desses testemunhos é folclore: são registros documentais, publicados, verificáveis. E todos convergem para a imagem de um Imperador culto, moderado e constitucional.

Por oportuno, impõe lembrar que a Constituição de 1824, embora fruto de um momento pós-independência, foi uma carta liberal avançada para seu tempo, espelhada na Constituição espanhola. Afonso Arinos de Melo Franco, citado pelo comunista Leôncio Basbaum, na obra “História sincera da República” (4 volumes), diz que a Constituição que foi promulgada pelo Imperador Pedro I, depois de haver fechado a Constituinte de 1823, era mais democrática do que a que estava sendo gestada no Parlamento sob a liderança dos irmãos Andrada. Promulgada em 1824, a Constituição nascida sob Pedro I, permaneceu por 65 como o mesmo marco jurídico. Podemos assegurar sem erro que durante esse período o Brasil Imperial conheceu sucessão de poder estável, harmonia entre poderes, ausência de golpes, integridade territorial preservada e governabilidade regular.

     O país funcionou sob a lógica do Poder Moderador, muitas vezes mal compreendido hoje, mas que, de fato, não era absolutista, mas uma forma de “árbitro institucional” com o objetivo de manter o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Era instrumento inspirado no constitucionalismo inglês, especialmente na visão de Benjamin Constant, não o brasileiro que se inscreveu entre os golpistas de 1889, mas o autor do clássico “Princípios de Política Aplicáveis a Todos os Governos”. O Constant francês era defensor de uma “magistratura neutra” que prevenisse crises políticas. O Poder Moderador foi um instrumento de equilíbrio. A Monarquia brasileira, com todos os seus problemas, conseguiu algo raro na América Latina: unidade política, territorial e institucional.

                                                                   


 

Em contraste gritante, que está explícito para qualquer curioso da história-pátria, a nossa República é um tempestuoso oceano de instabilidade política e criou uma cultura de desrespeito aos mais comezinhos valores democráticos. Nesse rastro de descompassos, produziu 8 Constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969, 1988). Seguindo o exemplo de 1889, contam-se quatro Golpes de Estado (1930, 1937, 1945, 1964). As crises levaram ao impeachment de dois presidentes: Fernando Collor de Melo em  1992; e Dilma Roussef, 2016. Anteriormente tivemos duas deposições: a de Getúlio Vargas, em 1945; e a de João Goulart, em 1964. De permeio tivemos Estados de sítio, intervenções e fechamento do Congresso. Sem contar com a longa ditadura estadonovista de Vargas (1937 a 1945). A rigor desde a Revolução de 1930, quando Vargas assumiu o poder e ficou enrolando até 1937, quando deu o golpe fatal na democracia já agonizante. E o longo período de governos autoritários, comandados por militares (1964–1985).

Ao contrário da Monarquia, a República brasileira foi, desde o início, um regime de substituições constitucionais recorrentes, demonstrando falhas estruturais e incapacidade de estabilidade a longo prazo. No dias atuais estamos a constatar o ludíbrio que o próprio Poder Judiciário impõe à nação, de fato, enquanto discursa em defesa da democracia. A Constituição de 1988 está sob tensão.  Com efeito, a chamada de Constituição Cidadã tem sido objeto de uma hermenêutica falaciosa, desvestida da cientificidade que o legítimo direito exige, condição “sine qua non” para que o Estado seja efetivamente democrático. A nossa Constituição, que queríamos fosse escudo e anteparo de todas as crises, está agora a ser vítima de reinterpretações expansivas, ativismos judiciais, invasões de competência, decisões monocráticas de impacto nacional, e debates constantes sobre limites do STF. Não é necessário assumir um lado político para reconhecer que o texto constitucional vem sendo esticado, reinterpretado e até contrariado em temas como sensíveis como a separação dos poderes, a liberdade de expressão, o sistema eleitoral, o federalismo, decisões penais monocráticas, as competências do Legislativo. A própria ideia de “Constituição rígida”, típica de repúblicas modernas, tem sido corroída por sucessivas intervenções interpretativas. Não é necessário ser especialista em Ciência Política para constatar que institucionalmente, a Monarquia brasileira cumpriu seu papel, ao proporcionar continuidade, coerência jurídica e moderação. A República, ao contrário, tornou-se um campo de disputas partidárias que frequentemente ultrapassam os marcos da constitucionalidade.

Por final, é importante desconstruir a ideia equivocada de que temos uma tradição republicana. Eis uma grande mentira!!! Essa narrativa falaciosa foi plantada maldosamente na sociedade, mas não encontra sustentação histórica, em razão do próprio nascimento da nação brasileira. O imaginário do povo brasileiro é predominantemente monarquista. A cultura brasileira, contradizendo o modelo republicano, permanece profundamente monárquica em sua simbologia. É revelador que o povo continue a associar excelência, respeito e grandeza a termos monárquicos: “Rei do Futebol” (Pelé), “Rainha dos Baixinhos” (Xuxa), “Rei do Baião” (Luiz Gonzaga), “Rainha da Sofrência”, “Imperador do Samba”, “Princesa do Sertanejo”. E na gastronomia: “Rei da Buchada”, “Rei da Panelada”, “Rei da Pizza”, “Rei do Sushi”. Imaginem!!!

Mesmo sem Monarquia, o povo espontaneamente recupera a dignidade simbólica da realeza. É a forma cultural brasileira de exprimir reconhecimento aos valores da monarquia, algo que o termo “presidente”, desgastado e politicamente fluido, não carrega. A palavra “presidente” no Brasil tornou-se, com raras exceções, sinônimo de disputa, suspeita, escândalo, instabilidade. “Presidente” é um vocábulo desmoralizado. Já a realeza é símbolo de excelência, permanência e respeito.

Há uma situação histórica da qual a República não pode se desvencilhar. Criticar o golpe de 1889 não é mero saudosismo aristocrático, mas uma necessidade intelectual diante dos fatos históricos e institucionais. A Monarquia brasileira proporcionou aos brasileiros estabilidade, unidade territorial, preservou instituições, manteve uma Constituição por 65 anos, formou estadistas, e projetou o Brasil internacionalmente. Qual o legado da República? Multiplicou constituições, acumulou rupturas, mergulhou em crises recorrentes e ainda hoje luta em vão para consolidar um sistema constitucional estável. Ignorar essa realidade é recusar a autocrítica necessária para compreender o Brasil.

Enfim, não é difícil constatar que a tradição monárquica não está apenas no passado: está no imaginário nacional, na cultura popular, na linguagem e no símbolo. O povo, intuitivamente, nunca deixou de reconhecer o valor da realeza. Talvez porque tenha percebido, ainda que de forma não verbalizada, que a Monarquia funcionava, enquanto a República luta, há mais de um século, para se firmar.