O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou no dia 4 de novembro uma NOTA DOUTRINAL aprovada pelo Papa Leão XIV, na qual se define alguns limites para a veneração a Maria, Santíssima Virgem, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Salvador. Intitulada “Mater Populi Fidelis” (Mãe do Povo Fiel), o documento, resultante de um longo trabalho colegiado, faz uma releitura de títulos marianos atribuídos por muitos, não exatamente pela Igreja de forma oficial, a Maria, Mãe dos fiéis, Mãe de Cristo e, consequentemente Mãe de Deus (Theotokos), porque Cristo é a segunda pessoa da Santíssima Trindade, no que crêem católicos romanos, ortodoxos orientais e protestantes. Arrimada em fundamentos bíblicos e nas manifestações dos Padres, dos Doutores da Igreja, em harmonia com elementos da tradição oriental e do pensamento dos últimos Pontífices, a Nota dá o tom de como a Igreja deve se comportar em relação à figura de Maria.
Ao longo da história da Igreja os cristãos católicos aprendem a importância da devoção mariana e a cumulam de muitos títulos, que são invocados em todo o mundo, inclusive o de "Medianeira" e "Corredentora". Agora, o documento pontifício considera esses títulos inoportunos e inconvenientes. Todavia, para quem conhece a doutrina católica nada há de novo no front. O título de "Medianeira" sempre pertenceu a Maria como intercessora junto a Jesus Cristo, não junto a Deus-Pai; exatamente porque Jesus, é o único Senhor e Salvador. Títulos tais como “Mãe da graça” e “Medianeira de todas as graças” são aceitáveis dentro dos limites que se jungem à subordinação a Cristo. Essas filigranas teológicas, a rigor, não são alcançadas pela grande massa de fiéis em todo o mundo, até porque a natural tendência das multidões que praticam uma religiosidade popular sempre foi exagerar na devoção e na titulação de Maria.
Em meados dos anos 1990 escrevi um artigo, que foi publicado no jornal O POVO, cujo título é “Maria: o exagero católico e a omissão protestante.” Até parece que os luminares do Vaticano conhecem o pensamento ali exposado. Todavia, levando-se em consideração os posicionamentos de grandes teólogos cristãos ao longo do tempo, tanto católicos quanto protestantes, chega-se à conclusão de que as distorções da religiosidade popular em relação a veneração a Maria foram adubadas pelos pensadores da Igreja. Quem lê os comentários de Martinho Lutero, pai do cisma protestante, sobre o “Magnificat”, o mais belo hino mariano que está no Evangelho de Lucas, entende do que eu estou falando. Roger Schutz, prior de Taizé, ao referir-se à visão de Lutero sobre Maria, escreve que nos primórdios da Reforma não havia esse silêncio sobre a Mãe do Belo Amor nos templos evangélicos/protestantes. “Lutero não teve consciência de uma ruptura com o conjunto da comunidade cristã e muito menos das consequências que vivemos em nossos dias. Ele venerava aquela que foi a primeira a crer em Cristo, a primeira a pronunciar o sim e o amém de um coração fiel, aquela que por virtude do seu consentimento, refletiu em si a perfeição de Cristo.” Com efeito, no “Comentário sobre o Magnificat”. Lutero reflete essa veneração, que no processo histórico foi-se esvaindo no campo protestante até chegar, em determinados casos, a atitudes desrespeitosas e, portanto, heréticas para com a “Theotokos”. O que pode ser compreensível se levarmos em consideração a ignorância dos detratores.
Voltemos aos títulos marianos em questão e que têm uma história longa e complexa dentro da teologia católica, com nuances entre o uso devocional, teológico e do magistério oficial. A Igreja reconhece Maria como “Mediadora”, mas num sentido subordinado e participativo, nunca como uma mediação “paralela” à de Cristo. Essa história de dizer que os católicos adoram Maria é conversa de gente mal formada e mal informada, que desconhece termos como DULIA (veneração aos santos) e HIPERDULIA (veneração à Nossa Senhora), que se confundem com a adoração ao Deus Filho. O fato de documentos papais muitas vezes exaltarem a plenitude da graça em Maria, não a transforma, no entanto, em substituta de Cristo na economia da salvação. Vale salientar a posição oficial da Igreja, por intermédio do magistério episcopal e papal, sempre resultante de pensamento colegiado:
1. 1. Encíclica “Ad Diem Illum Laetissimum”, do Papa São Pio X (1904)
“Ela é a dispensadora de todas as graças que Jesus conquistou com sua morte e seu sangue (...) É por Maria que Jesus nos é dado, e é por Maria que todas as graças nos vêm.” Aqui aparece fortemente a ideia de Maria como Mediadora de todas as graças, mas em tom devocional.
2. 2. Encíclica “Mediator Dei”, do Papa Pio XII (1947)
Embora trate da liturgia, o título reforça que Cristo é o único Mediador, e qualquer mediação mariana é derivada e subordinada à de Cristo.
3. Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, documento conciliar. Concílio Vaticano II (1964), n.º 60-62
Este é o documento magisterial é, possivelmente, o mais importante e normativo sobre o tema. Ali se pode ler: “A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum obscurece nem diminui a única mediação de Cristo, mas até manifesta a sua eficácia(...) Por isso a Santíssima Virgem é invocada na Igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Socorro e Mediadora.” Destarte, a “Lumen Gentium” reconhece o título de “Mediadora”, mas adverte que isso não deve ser entendido como uma mediação igual ou paralela à de Cristo, o único Mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,5).
Quanto ao título de “Corredentora”, não há uma definição oficial. Trata-se de um uso nascido da devoção do povo católico. A Igreja nunca proclamou oficialmente o título de “Corredentora” como dogma ou definição doutrinal obrigatória. O termo aparece em alguns escritos papais e teológicos, mas sempre em sentido analógico (participação subordinada de Maria na obra redentora de Cristo), nunca em sentido dogmático pleno. Importante lembrar que declarações meramente devocionais não devem ser confundidas com documentos oficiais ou decisões dogmáticas da Igreja. Vejamos algumas manifestações de natureza pessoal de importantes líderes espirituais da Igreja Católica:
1. O Papa Pio XI usou o termo “Corredentora” em discursos públicos (por exemplo, em 1933 e 1935):“A Santíssima Virgem foi associada à obra da redenção como Corredentora.” Veja-se que a manifestação não foi feita em documento dogmático ou encíclica, mas apenas em alocuções e discursos.
O Papa São João Paulo II empregou o termo “Corredentora” algumas vezes, mas em discursos (não em documentos magisteriais: “Maria foi, de modo particular, associada à obra redentora de seu Filho(...) podemos chamá-la de Corredentora.” (Discurso, 6 de fevereiro de 1985). Contudo, João Paulo II não propôs esse título como dogma, e inclusive reforçou a unicidade da redenção em Cristo.
O Papa Francisco, menos mariano, advertiu contra o uso excessivo do termo: “Cristo é o único redentor. As expressões de Maria como "Corredentora" ou "Mediadora" às vezes podem ser mal interpretadas.” (Homilia, 12 de dezembro de 2019)
Enfim, a Igreja tem ensinado oficialmente que Maria participa da mediação de Cristo (Mediadora subordinada); coopera com a redenção (Corredentora, em sentido analógico, não dogmático); Mas Cristo é o único Mediador e Redentor, ou seja, Maria participa dessa obra de modo derivado e instrumental. Portanto, as orientações publicadas pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, publicada com o aval do Papa Leão XIV, deixou ouriçados apenas os não católicos e/ou católicos que não conhecem os documentos do magistério da Igreja Católica. Voltaremos ao tema.






