segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O JULGAMENTO DE SÓCRATES À LUZ DO DIREITO



Barros Alves


Apresentação do livro
O JULGAMENTO DE SÓCRATES À LUZ DO DIREITO,
de autoria do jurista Roberto Victor


Sinto-me invadido, neste momento, pelo mesmo sentimento de Ulisses/Odisseu que no canto IX do homérico poema, titubeia em face do poderoso Alcínoo, rei dos míticos feácios:

“Por onde começar? Por onde terminar? São incontáveis os padecimentos que os deuses celestiais me reservaram”.

Não padeço por ter sorte igual a do grande herói grego, mas pelos meus poucos merecimentos em face da honra de haver sido convidado para tão auspiciosa missão, quando tantos maiores do que eu em engenho e arte assentam-se à Mesa e neste seleto auditório.

E sinto-me deveras acanhado não apenas diante dos luminares das letras, das artes e das ciências jurídicas aqui presentes; mas também pelo fato de apadrinhar um livro que já tem no rol de seus padrinhos nomes como Ives Gandra da Silva Martins, Ada Pellegrini Grinover e Luís Flávio Gomes, entre outros.

Igualmente a personagem central da Odisseia, não começarei por dizer o meu nome que é o menos importante. Direi do objeto desta noite festiva e daquele que é o protagonista desta festa excelsa, o jovem jurista Roberto Victor Pereira Ribeiro.

Direi da alegria de quantos mais uma vez se regozijam quando se oferece à sociedade um presente de exponencial valor: um livro.

Um livro que historia e analisa um julgamento de um homem ocorrido há mais de dois mil anos, mas que ainda hoje abala os alicerces de valores éticos determinantes para a civilização ocidental, os quais foram delineados e defendidos com tranquila intransigência por este mesmo homem.

O julgamento e a execução de Sócrates em Atenas, no ano 399 aC, constituem ainda hoje um claro enigma para quantos se debruçam sobre este episódio que tem dado azo a outros filósofos e historiadores, a partir do discípulo Platão, sem esquecermos Xenofonte, Aristóteles e Aristófanes, o grande comediante que um quarto de século antes do suicídio do filósofo já o havia acusado em AS NUVENS, de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade.

Por que, em uma sociedade tida e havida como protótipo e exemplo de democracia, inda hoje exaltada como tal em razão dos parâmetros balizados pela justiça e pela  equanimidade dos seus governantes, matar-se-ia um dos seus cidadãos mais probos?

O que levaria uma sociedade que desfruta de mais liberdade e democracia do que qualquer outra que o mundo já viu ao longo da história, condenar à pena capital um filósofo septuagenário apenas pelo fato de ele usar esse direito de exercer plenamente a liberdade, especialmente a liberdade de expressão?

Sócrates é uma metáfora no tempo!

Tal como Jesus Cristo, cujo julgamento também já foi objeto das elucubrações de Roberto Victor, o Sócrates histórico situa-se aquém do mito e invade o imaginário de todos os discursos, caracteriza-se pelo mistério e se sedimenta no tempo como uma personagem de ficção esculpida com desvelo por quantos dele se ocupam, sobretudo os admiradores.

Mas, como determinar o Sócrates verdadeiro? Qual o mais histórico, o xenofôntico, o platônico, o aristofânico ou o aristotélico? É a pertinente indagação que faz I. F. Stone em outro livro famoso, O JULGAMENTO DE SÓCRATES, para assegurar, de logo, que não há como chegar a uma resposta incontestável. Assim, como se apresenta uma tarefa impraticável chegar-se ao Jesus histórico, assim também perscrutar o Sócrates verdadeiro parece trabalho de ínfimo resultado, ainda que sobre este haja bem mais registros históricos do que sobre aquele de quem se diz ser o Filho de Deus. Stone já o afirmou: “A literatura socrática é imensa; os dados concretos são poucos; e boa parte da literatura consiste em polêmicas muito distanciadas das fontes originais”.

De qualquer modo, em razão mesma da enigmática personagem, alteia-se a importância de obras como esta que hoje aqui se dá à lume, onde se averigúa mais uma vez a vida e a morte do pensador grego, sobretudo em suas nuances histórico-jurídicas.

Numa sociedade livre e aberta, que comportamento desviante teria adotado Sócrates para levar cerca de 500 atenienses, em uma espécie de júri popular, a patrocinar uma acusação que levaria o sábio ancião à morte?

A resposta para esta pergunta, como tudo o mais na vida de Sócrates, é motivo para impertinentes indagações filosóficas. Mas, encontrar uma resposta para tal julgamento que se fez mistério é complicada, sobretudo pelo fato de que as duas testemunhas de defesa sobreviventes, Platão e Xenofonte, são discípulos dele. Historiadores suspeitam que Platão e Xenofonte, com a intenção de iluminar a biografia de seu mestre, não apresentaram em seus relatos  provas que poderiam incriminar o velho pensador grego.

Todavia, há inequívocos indícios de que as decisões adotadas naquele momento com o objetivo de incriminar e condenar Sócrates tinham muito a ver com a turbulenta história de Atenas nos anos anteriores ao julgamento do mestre imprudente e, segundo muitos, impudente. É certo que a história não pode fornecer respostas definitivas, mas fornece pistas importantes sobre as quais podemos caminhar com relativa segurança.

Sócrates nascera, se criara e fora educado sob o pálio da liberdade e da democracia, de modo que desenvolvera um conjunto de valores e crenças que iriam colocá-lo em desacordo com a maioria de seus compatriotas atenienses. Com efeito, ele não era o democrata com ares libertários e feição socialista que assoma ao olhar de uma maioria que nos tempos atuais não está preocupada com os escaninhos da história.

A verdade é que para Sócrates, as pessoas não deveriam se autogovernar, posto que assemelhavam-se a um rebanho de ovelhas que precisava da direção de um sábio pastor. Ele não concordava com a ideia de que os cidadãos detinham as virtudes básicas necessárias para a consecução de uma sociedade harmoniosa. Tudo isto agredia o pensamento dominante do homem grego. E, como se não bastasse, Sócrates resolveu atacar o coração da democracia ateniense, criticando desdenhosamente o direito de cada cidadão de falar livremente na assembléia ateniense, ou seja de exercer a democracia popular tão ao gosto do discurso de certos segmentos políticos na atualidade.

Sócrates se valia da democracia e sob ela agia como um liberticida, igualmente a tantos que perambulam por este Brasil de hoje, os quais travestidos de democratas não veem a hora de subjugá-la, de calar vozes discordantes, de impedir a livre circulação da ideias nos meios de comunicação.

A observação vem a propósito do testemunho de Diógenes Laércio, em As Vidas dos Filósofos Eminentes, ao informar que Sócrates pregava suas ideias antidemocráticas nas praças, “discutia questões morais nas oficinas e nos mercados” e esta postura dá bem uma ideia desse conflito criado pelos pontos-de-vista que desagradavam o cidadão da POLIS e o tornaram impopular. As pessoas expressavam desdém em face de seus discursos e o observavam com ar de condescendência, alguns com raiva. Laércio escreveu que “os homens o perseguiam com ameaças e puxavam seus cabelos”. Sócrates, porém, ouvia os impropérios e sofria as agressões  com paciência.

Outra visão de Sócrates nos é dada por um seu contemporâneo, o dramaturgo  Aristófanes. Em AS NUVENS, texto produzido cerca de um quarto de século antes da morte de Sócrates, o autor apresenta o filósofo como uma figura excêntrica, retratando-o de forma quase cômica, “perseguido nas ruas” de Atenas, descalço, “revirando os olhos”, fazendo comentários pouco inteligentes – no entender de Aristófanes – e “com o olhar perdido nas nuvens”. Certamente, Sócrates já era naquele momento personagem pública reconhecida. Todavia, não metia medo a ninguém, muito menos ao Estado e à democracia grega.

Quanto a ele próprio, ao que parece, não se incomodava com as caricaturizações que dele faziam os comediantes, não as considerando, portanto, nenhuma ofensa. Tanto é que Plutarco, em sua “Moralia”, coloca na boca de Sócrates a seguinte afirmação: “Quando eles apresentam alguma brincadeira sobre mim no teatro, eu sinto como se estivesse em uma grande festa de bons amigos.”

De fato, a popularidade de Sócrates não era alvissareira por aquele tempo. Outras peças teatrais da época oferecem pistas adicionais sobre a situação nada cômoda para o filósofo que se comportava fora dos padrões atenienses. O poeta Êupolis, por exemplo, criou uma personagem nitidamente utilitarista que diz: “Sim, eu detesto esse pobre falastrão Sócrates, que contempla tudo no mundo, mas não sabe de onde virá sua próxima refeição”.

------“As aves do céu têm...

AS AVES, peça que Aristófanes escreveu seis anos depois de AS NUVENS, contém uma referência reveladora. Aristófanes rotula uma gangue de jovens pró Esparta como “socrática”. Esparta, modelo acabado de sociedade fechada, vivia às turras com a democrática Atenas. A observação aristofânica sugere que os ensinamentos de Sócrates podem ter começado a serem vistos como subversivos por volta do ano 417 aC.

A posição de Sócrates em relação à democracia ateniense agravou-se durante os dez últimos anos de sua vida, até porque dois dos seus discípulos, Alcibíades e Crítias,  atentaram claramente contra as liberdades em Atenas. Alcibíades, um dos políticos favoritos de Sócrates, protagonizou a primeira agressão à democracia ateniense; Crítias, um dos Trinta Tiranos, liderou a segunda revolta sangrenta contra a democracia da cidade, restaurada em 404. Essa rebelião enviou muitos líderes democratas de Atenas para o exílio, incluindo muitos dos que mais tarde proporcionaram as acusações a Sócrates, aí sobressaindo-se o rancoroso Ânito.

Os abusos cometidos pelos Trinta Tiranos, entre os quais um dos preeminentes líderes, Crítias, era discípulo de Sócrates, levaram a que os atenienses visse o velho mestre não apenas com olhar crítico ou de desprezo, mas sobretudo de precaução. Sócrates não era mais aquele sábio desprendido a perambular pelas ruas de Atenas com suas pregações fora de ordem. Ou seja, provado estava pela experiência que os ensinamentos socráticos já não eram  inofensivos. Os cidadãos não o consideravam mais aquele “adorável excêntrico” que servia de modelo para as personagens do teatro. Ele passou a ser visto, não sem razão,  como uma influência perigosa e corruptora, um preceptor de tiranos e inimigo da sociedade.

Isto constitui, indubitavelmente, a face antidemocrática do mito que se tem como gênio em que estão assentadas as bases filosóficas do mundo ocidental.

E quanto ao julgamento da nossa tão polêmica personagem?

Passadas as turbulências da ditadura dos Trinta Tiranos, retaurada a democracia em Atenas, eis que sobreveio a anistia para os protagonistas do evento antidemocrático, Sócrates entre eles. Assim, ele não poderia ser acusado de nenhum crime pelas palavras e ações praticadas antes e durante a ditadura liderada por Crítias. O problema é que   Sócrates, sob desconfiança geral, continua a pregação subversiva e antidemocrática aos olhos daquela Atenas ciosa de seus valores fundados na cidadania e na liberdade. Mais que dantes, então, os jovens entusiasmavam-se com os ensinamentos socráticos. Era necessário pôr um fim ao perigo que se alteava e atordoava a sociedade ateniense.

Em Atenas, o processo penal podia ser iniciado por qualquer cidadão. No caso de Sócrates, o processo começou quando Meleto, poeta, entregou uma convocação oral a Sócrates na presença de testemunhas. A convocação exigia que Sócrates comparecesse perante o magistrado, para responder às acusações de impiedade e corrupção da juventude. Os procedimentos legais foram adotados pelo magistrado, conforme o que se tinha como o “devido processo legal” na época.

De que modo, então, se desenvolveu o tão rumoroso processo que ainda hoje, mais de dois milênios depois, convoca ao debate filósofos, historiadores e luminares da ciência do Direito?

Não vos apresento a resposta, porque ela está inteiriça no resultado da ampla pesquisa levada a termo pelo jovem jurista Roberto Victor Pereira Ribeiro, o qual movido por espírito investigativo digno de um Sherlock Holmes ou de um Hercule Poirot, intentou deslindar a áurea matéria e empreendeu uma viagem a um tempo deslumbrante e aventurosa pelo grandioso mundo grego do tempo socrático, conseguindo num esforço intelectual de difícil superação, iluminar os escaninhos da vida e da morte de um homem que no imaginário do mundo ocidental só fica abaixo do Nazareno porque diferentemente daquele, não é o Filho de Deus, segundo a conceituação teológica destinada ao Cristo e haurida nas Sagradas Escrituras cristãs.

Antes de debruçar-se sobre o julgamento do grego subversivo, Roberto Victor ocupou-se de um judeu marginal. Arrimado nos mais eruditos estudos da História, da Teologia e da Ciência Jurídica, o jovem advogado foi à tribuna bibliográfica apontar o dedo denunciador da fraude jurídica praticada por aqueles que mataram o Messias, Rei dos Judeus, o Filho de Deus, julgado e condenado sob acusação formulada pela ambiciosa,  arrogante e hipócrita casta sacerdotal da Judeia ocupada, acusação cevada pela fúria da massa ignara, absorvida pelo arbítrio de Roma e consumada pela covardia de um juiz, Pôncio Pilatos. 

Por agora, Roberto Victor presenteia-nos,  com este O JULGAMENTO DE SÓCRATES Á LUZ DO DIREITO, um exercício de Direito Comparado na História, (o Direito antigo e o contemporâneo), obra que vulnerabiliza o leitor às primeiras páginas, empurrando-o para as profundidades de seguras informações e pertinentes análises emanadas de uma inteligência esmerilhada na leitura dos clássicos, sedimentada no garimpo da pesquisa histórica e aclarada pela luz cintilante de uma curiosidade insaciável.

Não nos esqueçamos, porém, como ensina Schopenhauer, o magnífico misantropo, que “o livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou; ou na forma, isto é na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria”.

O autor de O JULGAMENTO DE SÓCRATES À LUZ DO DIREITO inscreve-se entre os escritores que se dintinguem pela determinação e pela clareza e a obra que assinam declara-se por si mesma, em face da pertinência da interpretação dos fatos, da essencialidade e atemporalidade da matéria elaborada, filha do universo e da posteridade.

Senhoras e senhores

Meu caro Roberto Victor

Por final, tomo por empréstimo mais uma vez as palavras de Ulisses diante de Alcínoo no nono canto da Odisseia: “Não existe, asseguro-te, satisfação maior do que ver todo um povo possuído de alegria, os convivas sentados em linha nos salões a escutar um aedo...”

Vejo que a alegria desta noite se faz sentir não pela palavra deste modesto  aedo que vos fala, mas porque aqui vim para vos apresentar um livro cuja leitura honrará as vossas inteligências.






Nenhum comentário:

Postar um comentário