Barros Alves
Apresentação do livro
O JULGAMENTO DE SÓCRATES À LUZ
DO DIREITO,
de autoria do jurista Roberto Victor
Sinto-me invadido, neste momento, pelo mesmo sentimento de
Ulisses/Odisseu que no canto IX do homérico poema, titubeia em face do poderoso
Alcínoo, rei dos míticos feácios:
“Por onde começar? Por onde terminar? São incontáveis os padecimentos
que os deuses celestiais me reservaram”.
Não padeço por ter sorte igual a do grande herói grego, mas pelos meus
poucos merecimentos em face da honra de haver sido convidado para tão
auspiciosa missão, quando tantos maiores do que eu em engenho e arte assentam-se
à Mesa e neste seleto auditório.
E sinto-me deveras acanhado não apenas diante dos luminares das letras,
das artes e das ciências jurídicas aqui presentes; mas também pelo fato de
apadrinhar um livro que já tem no rol de seus padrinhos nomes como Ives Gandra
da Silva Martins, Ada Pellegrini Grinover e Luís Flávio Gomes, entre outros.
Igualmente a personagem central da Odisseia, não começarei por dizer o
meu nome que é o menos importante. Direi do objeto desta noite festiva e
daquele que é o protagonista desta festa excelsa, o jovem jurista Roberto
Victor Pereira Ribeiro.
Direi da alegria de quantos mais uma vez se regozijam quando se oferece
à sociedade um presente de exponencial valor: um livro.
Um livro que historia e analisa um julgamento de um homem ocorrido há
mais de dois mil anos, mas que ainda hoje abala os alicerces de valores éticos
determinantes para a civilização ocidental, os quais foram delineados e
defendidos com tranquila intransigência por este mesmo homem.
O julgamento e a execução de Sócrates em Atenas, no ano 399 aC,
constituem ainda hoje um claro enigma para quantos se debruçam sobre este
episódio que tem dado azo a outros filósofos e historiadores, a partir do
discípulo Platão, sem esquecermos Xenofonte, Aristóteles e Aristófanes, o
grande comediante que um quarto de século antes do suicídio do filósofo já o
havia acusado em AS NUVENS, de exercer uma influência nefasta sobre a
sociedade.
Por que, em uma sociedade tida e havida como protótipo e exemplo de
democracia, inda hoje exaltada como tal em razão dos parâmetros balizados pela
justiça e pela equanimidade dos seus
governantes, matar-se-ia um dos seus cidadãos mais probos?
O que levaria uma sociedade que desfruta de mais liberdade e democracia
do que qualquer outra que o mundo já viu ao longo da história, condenar à pena
capital um filósofo septuagenário apenas pelo fato de ele usar esse direito de
exercer plenamente a liberdade, especialmente a liberdade de expressão?
Sócrates é uma metáfora no tempo!
Tal como Jesus Cristo, cujo julgamento também já foi objeto das
elucubrações de Roberto Victor, o Sócrates histórico situa-se aquém do mito e
invade o imaginário de todos os discursos, caracteriza-se pelo mistério e se
sedimenta no tempo como uma personagem de ficção esculpida com desvelo por
quantos dele se ocupam, sobretudo os admiradores.
Mas, como determinar o Sócrates verdadeiro? Qual o mais histórico, o xenofôntico,
o platônico, o aristofânico ou o aristotélico? É a pertinente indagação que faz
I. F. Stone em outro livro famoso, O JULGAMENTO DE SÓCRATES, para assegurar, de
logo, que não há como chegar a uma resposta incontestável. Assim, como se apresenta
uma tarefa impraticável chegar-se ao Jesus histórico, assim também perscrutar o
Sócrates verdadeiro parece trabalho de ínfimo resultado, ainda que sobre este
haja bem mais registros históricos do que sobre aquele de quem se diz ser o
Filho de Deus. Stone já o afirmou: “A literatura socrática é imensa; os dados
concretos são poucos; e boa parte da literatura consiste em polêmicas muito
distanciadas das fontes originais”.
De qualquer modo, em razão mesma da enigmática personagem, alteia-se a
importância de obras como esta que hoje aqui se dá à lume, onde se averigúa
mais uma vez a vida e a morte do pensador grego, sobretudo em suas nuances
histórico-jurídicas.
Numa sociedade livre e aberta, que comportamento desviante teria adotado
Sócrates para levar cerca de 500 atenienses, em uma espécie de júri popular, a
patrocinar uma acusação que levaria o sábio ancião à morte?
A resposta para esta pergunta, como tudo o mais na vida de Sócrates, é
motivo para impertinentes indagações filosóficas. Mas, encontrar uma resposta
para tal julgamento que se fez mistério é complicada, sobretudo pelo fato de
que as duas testemunhas de defesa sobreviventes, Platão e Xenofonte, são
discípulos dele. Historiadores suspeitam que Platão e Xenofonte, com a intenção
de iluminar a biografia de seu mestre, não apresentaram em seus relatos provas que poderiam incriminar o velho
pensador grego.
Todavia, há inequívocos indícios de que as decisões adotadas naquele
momento com o objetivo de incriminar e condenar Sócrates tinham muito a ver com
a turbulenta história de Atenas nos anos anteriores ao julgamento do mestre
imprudente e, segundo muitos, impudente. É certo que a história não pode
fornecer respostas definitivas, mas fornece pistas importantes sobre as quais
podemos caminhar com relativa segurança.
Sócrates nascera, se criara e fora educado sob o pálio da liberdade e da
democracia, de modo que desenvolvera um conjunto de valores e crenças que iriam
colocá-lo em desacordo com a maioria de seus compatriotas atenienses. Com
efeito, ele não era o democrata com ares libertários e feição socialista que
assoma ao olhar de uma maioria que nos tempos atuais não está preocupada com os
escaninhos da história.
A verdade é que para Sócrates, as pessoas não deveriam se autogovernar,
posto que assemelhavam-se a um rebanho de ovelhas que precisava da direção de
um sábio pastor. Ele não concordava com a ideia de que os cidadãos detinham as
virtudes básicas necessárias para a consecução de uma sociedade harmoniosa.
Tudo isto agredia o pensamento dominante do homem grego. E, como se não
bastasse, Sócrates resolveu atacar o coração da democracia ateniense,
criticando desdenhosamente o direito de cada cidadão de falar livremente na
assembléia ateniense, ou seja de exercer a democracia popular tão ao gosto do
discurso de certos segmentos políticos na atualidade.
Sócrates se valia da democracia e sob ela agia como um liberticida,
igualmente a tantos que perambulam por este Brasil de hoje, os quais
travestidos de democratas não veem a hora de subjugá-la, de calar vozes
discordantes, de impedir a livre circulação da ideias nos meios de comunicação.
A observação vem a propósito do testemunho de Diógenes Laércio, em As Vidas dos Filósofos Eminentes, ao
informar que Sócrates pregava suas ideias antidemocráticas nas praças, “discutia
questões morais nas oficinas e nos mercados” e esta postura dá bem uma ideia
desse conflito criado pelos pontos-de-vista que desagradavam o cidadão da POLIS
e o tornaram impopular. As pessoas expressavam desdém em face de seus discursos
e o observavam com ar de condescendência, alguns com raiva. Laércio escreveu
que “os homens o perseguiam com ameaças e puxavam seus cabelos”. Sócrates,
porém, ouvia os impropérios e sofria as agressões com paciência.
Outra visão de Sócrates nos é dada por um seu contemporâneo, o dramaturgo Aristófanes. Em AS NUVENS, texto produzido cerca de um quarto de século antes da morte de Sócrates, o autor apresenta o filósofo como uma figura excêntrica, retratando-o de forma quase cômica, “perseguido nas ruas” de Atenas, descalço, “revirando os olhos”, fazendo comentários pouco inteligentes – no entender de Aristófanes – e “com o olhar perdido nas nuvens”. Certamente, Sócrates já era naquele momento personagem pública reconhecida. Todavia, não metia medo a ninguém, muito menos ao Estado e à democracia grega.
Quanto a ele próprio, ao que parece, não se incomodava com as caricaturizações
que dele faziam os comediantes, não as considerando, portanto, nenhuma ofensa.
Tanto é que Plutarco, em sua “Moralia”, coloca na boca de Sócrates a seguinte
afirmação: “Quando eles apresentam alguma brincadeira sobre mim no teatro, eu
sinto como se estivesse em uma grande festa de bons amigos.”
De fato, a popularidade de Sócrates não era alvissareira por aquele tempo.
Outras peças teatrais da época oferecem pistas adicionais sobre a situação nada
cômoda para o filósofo que se comportava fora dos padrões atenienses. O poeta
Êupolis, por exemplo, criou uma personagem nitidamente utilitarista que diz:
“Sim, eu detesto esse pobre falastrão Sócrates, que contempla tudo no mundo,
mas não sabe de onde virá sua próxima refeição”.
------“As aves do céu têm...
AS AVES, peça que Aristófanes escreveu seis anos depois de AS NUVENS,
contém uma referência reveladora. Aristófanes rotula uma gangue de jovens pró
Esparta como “socrática”. Esparta,
modelo acabado de sociedade fechada, vivia às turras com a democrática Atenas.
A observação aristofânica sugere que os ensinamentos de Sócrates podem ter
começado a serem vistos como subversivos por volta do ano 417 aC.
A posição de Sócrates em relação à democracia ateniense agravou-se
durante os dez últimos anos de sua vida, até porque dois dos seus discípulos,
Alcibíades e Crítias, atentaram claramente
contra as liberdades em Atenas. Alcibíades, um dos políticos favoritos de
Sócrates, protagonizou a primeira agressão à democracia ateniense; Crítias, um
dos Trinta Tiranos, liderou a
segunda revolta sangrenta contra a democracia da cidade, restaurada em 404.
Essa rebelião enviou muitos líderes democratas de Atenas para o exílio,
incluindo muitos dos que mais tarde proporcionaram as acusações a Sócrates, aí
sobressaindo-se o rancoroso Ânito.
Os abusos cometidos pelos Trinta
Tiranos, entre os quais um dos preeminentes líderes, Crítias, era discípulo
de Sócrates, levaram a que os atenienses visse o velho mestre não apenas com
olhar crítico ou de desprezo, mas sobretudo de precaução. Sócrates não era mais
aquele sábio desprendido a perambular pelas ruas de Atenas com suas pregações
fora de ordem. Ou seja, provado estava pela experiência que os ensinamentos
socráticos já não eram inofensivos. Os
cidadãos não o consideravam mais aquele “adorável excêntrico” que servia de
modelo para as personagens do teatro. Ele passou a ser visto, não sem
razão, como uma influência perigosa e
corruptora, um preceptor de tiranos e inimigo da sociedade.
Isto constitui, indubitavelmente, a face antidemocrática do mito que se
tem como gênio em que estão assentadas as bases filosóficas do mundo ocidental.
E quanto ao julgamento da nossa tão polêmica personagem?
Passadas as turbulências da ditadura dos Trinta Tiranos, retaurada a democracia em Atenas, eis que sobreveio
a anistia para os protagonistas do evento antidemocrático, Sócrates entre eles.
Assim, ele não poderia ser acusado de nenhum crime pelas palavras e ações
praticadas antes e durante a ditadura liderada por Crítias. O problema é
que Sócrates, sob desconfiança geral,
continua a pregação subversiva e antidemocrática aos olhos daquela Atenas ciosa
de seus valores fundados na cidadania e na liberdade. Mais que dantes, então,
os jovens entusiasmavam-se com os ensinamentos socráticos. Era necessário pôr
um fim ao perigo que se alteava e atordoava a sociedade ateniense.
Em Atenas, o processo penal podia ser iniciado por qualquer cidadão. No
caso de Sócrates, o processo começou quando Meleto, poeta, entregou uma
convocação oral a Sócrates na presença de testemunhas. A convocação exigia que
Sócrates comparecesse perante o magistrado, para responder às acusações de
impiedade e corrupção da juventude. Os procedimentos legais foram adotados pelo
magistrado, conforme o que se tinha como o “devido processo legal” na época.
De que modo, então, se desenvolveu o tão rumoroso processo que ainda
hoje, mais de dois milênios depois, convoca ao debate filósofos, historiadores
e luminares da ciência do Direito?
Não vos apresento a resposta, porque ela está inteiriça no resultado da
ampla pesquisa levada a termo pelo jovem jurista Roberto Victor Pereira
Ribeiro, o qual movido por espírito investigativo digno de um Sherlock Holmes
ou de um Hercule Poirot, intentou deslindar a áurea matéria e empreendeu uma
viagem a um tempo deslumbrante e aventurosa pelo grandioso mundo grego do tempo
socrático, conseguindo num esforço intelectual de difícil superação, iluminar
os escaninhos da vida e da morte de um homem que no imaginário do mundo
ocidental só fica abaixo do Nazareno porque diferentemente daquele, não é o
Filho de Deus, segundo a conceituação teológica destinada ao Cristo e haurida
nas Sagradas Escrituras cristãs.
Antes de debruçar-se sobre o julgamento do grego subversivo, Roberto
Victor ocupou-se de um judeu marginal. Arrimado nos mais eruditos estudos da
História, da Teologia e da Ciência Jurídica, o jovem advogado foi à tribuna
bibliográfica apontar o dedo denunciador da fraude jurídica praticada por
aqueles que mataram o Messias, Rei dos Judeus, o Filho de Deus, julgado e
condenado sob acusação formulada pela ambiciosa, arrogante e hipócrita casta sacerdotal da
Judeia ocupada, acusação cevada pela fúria da massa ignara, absorvida pelo
arbítrio de Roma e consumada pela covardia de um juiz, Pôncio Pilatos.
Por agora, Roberto Victor presenteia-nos, com este O JULGAMENTO DE SÓCRATES Á LUZ DO
DIREITO, um exercício de Direito Comparado na História, (o Direito antigo e o
contemporâneo), obra que vulnerabiliza o leitor às primeiras páginas,
empurrando-o para as profundidades de seguras informações e pertinentes
análises emanadas de uma inteligência esmerilhada na leitura dos clássicos,
sedimentada no garimpo da pesquisa histórica e aclarada pela luz cintilante de
uma curiosidade insaciável.
Não nos esqueçamos, porém, como ensina Schopenhauer, o magnífico
misantropo, que “o livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos
do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto
naquilo sobre o que ele pensou; ou na forma, isto é na elaboração da matéria,
portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria”.
O autor de O JULGAMENTO DE SÓCRATES À LUZ DO DIREITO inscreve-se entre os
escritores que se dintinguem pela determinação e pela clareza e a obra que
assinam declara-se por si mesma, em face da pertinência da interpretação dos
fatos, da essencialidade e atemporalidade da matéria elaborada, filha do
universo e da posteridade.
Senhoras e senhores
Meu caro Roberto Victor
Por final, tomo por empréstimo mais uma vez as palavras de Ulisses
diante de Alcínoo no nono canto da Odisseia: “Não existe, asseguro-te,
satisfação maior do que ver todo um povo possuído de alegria, os convivas
sentados em linha nos salões a escutar um aedo...”
Vejo que a alegria desta noite se faz sentir não pela palavra deste modesto
aedo que vos fala, mas porque aqui vim
para vos apresentar um livro cuja leitura honrará as vossas inteligências.
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