Barros Alves
Poeta e
jornalista
Os trágicos
acontecimentos que têm ocorrido nos últimos dias em vários países do mundo,
sobretudo o massacre contra jornalistas do Charlie Hebdo, na França, impõem uma
reflexão profunda sobre as históricas relações entre Ocidente e Oriente,
especialmente entre o Cristianismo e o Islamismo. A primeira constatação é que
essas relações sempre foram marcadas por tensões, menos no respeitante ao
diálogo interreligioso do que nos aspectos culturais dos povos envolvidos. Mas,
entendemos que constitui grave erro de alguns analistas olvidarem a questão
religiosa dos conflitos referidos, jungindo-os a apenas ambições políticas e de
poder. Uma coisa, em definitivo, não exclui a outra. Ao contrário, imbricam-se
indelevelmente. Começa-se pelo fato de que não há compartimentalizações no
pensamento islâmico. O Islamismo, como nos lembra o professor Peter
Demant, é a um só tempo uma religião
(din), com suas crenças, rituais, normas, consolações etc.; como também tem um
profundo sentido comunitário (umma), cujo ‘modus vivendi’ está assentado
firmemente nas tradições iniciadas com os ensinamentos do Profeta Maomé (sunna
– daí, sunitas). Estes aspectos regularizam toda a vida do muçulmano: educação,
comércio, governo, sistemas jurídicos e filosóficos, relações de gênero.
Em face das
inúmeras agressões físicas e morais –sobretudo estas – ocorridas contra o mundo
islâmico desde o seu nascimento no século VII d.C., persiste no Islã um
arraigado senso de autodefesa. Para alguns, mania de perseguição. Isto faz com
que os ensinamentos corânicos sejam interpretados de maneira absoluta, sem os
relativismos que comandam a hermenêutica do livro sagrado dos cristãos. É
mister lembrar que enquanto para o cristão Jesus Cristo é o Deus encarnado,
guardadas as devidas proporções, para o muçulmano o Alcorão é uma espécie de
“Deus enlivrado”. Na cabeça do muçulmano o Alcorão é a “ipsissima verba” de
Deus, ou seja, é a própria palavra de Deus que revelou o longo Poema Corânico
ao Profeta Maomé pela boca do Anjo Gabriel. De modo que essa mentalidade permeia
toda a cultura do mundo islâmico, tanto fundamentalistas quanto outros ramos do
Islã, os quais, aliás, são muitos.
Esta
problemática sócio-histórico-teológica está limpidamente exposada no Alcorão:
“Combatei nas sendas de Deus os que vos combatem; mas não sejais agressores ou
transgressores. Deus não ama os agressores ou os transgressores. Matai-os em
toda a parte onde os encontrardes e expulsai-os donde vos expulsaram. A
subversão é pior do que o homicídio” (Alcorão, Sura 2. Versículos 186,187,190,
191). Considere-se que a “expulsão” e a “subversão” de que fala o texto
corânico é de natureza não apenas física, mas sobretudo moral. A revelação do
texto ocorreu quando o Profeta e seus seguidores foram expulsos de Meca e
fugiram para Medina no ano 622, exatamente em face das visões extraordinárias do
líder. Ao episódio deu-se o nome de Hégira.
O
intelectual J.-M. Abd el-Jalil, autor de
uma História da Literatura Árabe, escreveu um ensaio sociológico intitulado
“L’Islam et nous” (“O Islã e nós”), cuja leitura nos dá uma ideia concreta
dessa tensão permanente entre o mundo islâmico e os infiéis, ou seja, todos
aqueles que não professam a fé do Profeta: “O Islã continua dominado por uma
atitude de luta...defensiva. Primeiro perseguido porque reclamava a
exclusividade do culto (‘ibadah) para Allah, Deus ‘sem sócio’, ‘sem rival’, nem
filhos, nem ‘filhas’, nem ‘esposas’, acabou constituindo-se em coletividade
agressiva por ficar na defensiva: internamente, contra os ‘hipócritas’ e os
judeus; externamente, contra os ‘associonistas’ - politeístas de Meca(...) O
Islã não será unicamente uma religião: será também uma organização política e
um mundo cultural, à parte; e tudo isso ao mesmo tempo. Esta concepção do papel
do Islã deve estar sempre presente no espírito, para se evitar o equívoco por
demais corrente de julgá-lo a partir de um ponto de vista ocidental, do
Cristianismo. Também, por causa disso, o Islamismo permanece ainda a religião
da massa, da coletividade, mais do que simplesmente coisa do indivíduo face a
seu Deus.”
Se artistas
como os do Charlie Hebdo achincalham e vilipendiam os símbolos cristãos e de
outras religiões sem que lhes sejam impostas quaisquer normas, o mesmo não
ocorre quando se trata do fundamentalismo islâmico. Disto eles sabiam e
correram o risco propositadamente. Impõe-se lembrar que a sociedade que abriga
o Charlie Hebdo e similares é, também ela, em certa medida, paradoxalmente,
pelo menos em tese, uma sociedade fundamentalista na ilimitada valorização da
liberdade. A liberdade não pode ser um valor absoluto, porque se assim admitirmos,
os assassinos dos cartunistas teriam a liberdade de matar. Por outro lado, o
discurso de liberdade de Imprensa se tornou falacioso no momento em que o governo francês ordenou a
prisão de um cartunista que fez humor com os mortos pelos terroristas
islâmicos. Ademais disto, não se pode confundir gozação execrável e antirreligiosa
com humor. O riso, uma das mais belas manifestações do espírito humano, não
deve jamais descambar para a agressão aos sentimentos do outro, notadamente
quando se trata do sentimento religioso que assoma do mais profundo da alma
humana.
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