Barros Alves
Leio
mais uma vez um pequeno livro - "DIALÉTICA DA SECULARIZAÇÃO: SOBRE
RAZÃO E RELIGIAO - contendo textos que resultaram de um diálogo entre o
filósofo Jürgen Habermas e o então Cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa
Bento XVI. ocorrido em 2004, na Academia Católica da Baviera. O debate
entre dois intelectuais antípodas do mais alto nível, um filósofo ateu e
um teólogo que ao tempo presidia o mais importante Dicastério (então
Congregação), o órgão defensor da fé católica no Vaticano, remeteu-me a
uma questão antiga, mas que continua central no debate atual que aborda
as "reflexões sobre a estrutura do diálogo interreligioso no mundo",
consoante lembra o padre e filósofo Florian Schüller. Ecumenismo e
diálogo interreligioso quase sempre são colocados dentro do mesmo
recipiente desse debate. Porém, é necessário, segundo meu modesto
entendimento, se definir as linhas divisórias que aclaram as
diferenças.
A questão é delicada, mas comporta
algumas observações. É importante compreender a diferença entre
ecumenismo e diálogo interreligioso, pois embora muitas vezes sejam
confundidos, tratam de propostas distintas. O ecumenismo busca a união
das diversas denominações cristãs em torno de um suposto núcleo comum de
fé, minimizando ou relativizando diferenças doutrinárias fundamentais.
O movimento ecumênico intenta colocar em segundo plano verdades
essenciais de cada tradição e, desse modo, corre o risco de diluir a
identidade de cada confissão religiosa, transformando a unidade em
uniformidade artificial. Por isso, o ecumenismo deve ser visto com
cautela, pois pode levar à perda da clareza doutrinal e da fidelidade às
convicções originais.
Por seu turno, o diálogo
interreligioso, segundo entendo, se apresenta como caminho mais legítimo
e fecundo. Ele não pretende uniformizar crenças, mas sim promover o
respeito mútuo, a convivência pacífica e a colaboração entre diferentes
religiões em questões éticas, sociais e humanitárias. Nesse processo,
cada tradição permanece fiel à sua identidade, sem renunciar ao que crê,
mas se abre para escutar e compreender o outro. Assim, o diálogo
interreligioso fortalece a paz, a justiça e a cooperação entre os povos,
sem comprometer a integridade da fé de cada comunidade.
Esse
debate se complica quando consultamos documentos basilares da Igreja
Católica Apostólica Romana, que nunca foram revogados e, portanto,
continuam como faróis a iluminar a caminhada dos católicos. A Igreja
Católica, na condição de mãe e mestra ("Mater et Magistra" é título de
Encíclica papal), possui a plenitude da verdade revelada por Cristo.
Portanto, só há sentido verdadeiro no ecumenismo se ele culminar na
plena conversão das demais denominações cristãs ao seio da Igreja
Católica. Qualquer tentativa de ecumenismo que relativize a verdade da
fé, colocando todas as confissões no mesmo patamar, esvazia a missão da
Igreja e deturpa o ensinamento de que “extra Ecclesiam nulla salus” —
fora da Igreja não há salvação. Esses pontos são amainados na prática,
mas continuam vivos na doutrina e prontos para serem usados diante de
quaisquer dúvidas ou impasses.
Por outro lado, o
diálogo interreligioso pode e deve ser valorizado, não como negociação
de verdades, mas como espaço de respeito, convivência e cooperação
prática em questões sociais, éticas e humanitárias. Esse diálogo permite
colaboração em favor da dignidade humana e da paz, sem comprometer a
identidade católica nem diluir a fé em Cristo.
Assim,
enquanto o ecumenismo só se justifica como caminho de retorno dos
afastados à verdadeira Igreja de Cristo, o diálogo interreligioso é
instrumento legítimo de convivência harmoniosa com quem não partilha da
mesma fé, sem jamais abrir mão da missão evangelizadora da Igreja
Católica.
Por oportuno, no concernente ao
palpitante tema devo lembrar a palavra de São João Paulo II, na
Encíclica "Redemptoris Missio" (1990), n. 55: “O diálogo interreligioso
faz parte da missão evangelizadora da Igreja. Entendido como método e
meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, ele não se opõe à
missão 'ad gentes', mas está em íntima relação com ela e é uma de suas
expressões.” anteriormente, em 1986, o Papa havia promovido o Encontro
de Assis, que reuniu líderes de várias religiões para rezar pela paz,
reforçando que o diálogo não é relativismo, mas busca de fraternidade.
Lembro-me que na época o Cardeal Ratzinger, um "cão de guarda" da fé
católica e homem da confiança de João Paulo II, foi questionado pelo
gesto do papa conservador haver "rezado com" líderes religiosos de
crenças distantes da Igreja Católica, como os muculmanos. Ratzinger
sabiamente respondeu que o Papa não "rezou com". Ele "rezou junto de..."
O
Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da então Congregação para a Doutrina
da Fé hoje chamado Dicastério, foi eleito para sentar no trono papal.
Reconhecido como um dos mais importantes teólogos da Igreja Católica no
século XX, em Discurso à Cúria Romana (2006, assim se manifesta: “O
diálogo interreligioso é parte do diálogo entre culturas e não pode ser
separado dele. Não se trata de renunciar à verdade, mas de procurar
sinceramente o que é justo e bom junto com os outros.” Bento XVI sempre
insistiu que o diálogo deve estar fundamentado na verdade e na razão,
nunca em relativismos. De igual modo manifestou-se o Papa Francisco na
Exortação Apostólica "Evangelii Gaudium: (2013), n. 250: “O diálogo
interreligioso é uma condição necessária para a paz no mundo, e,
portanto, é um dever para os cristãos, assim como para outras
comunidades religiosas.”
No "Documento sobre a
Fraternidade Humana" (Abu Dhabi, 2019), assinado com o Grande Imã da
Universidade-Mesquita de Al-Azhar, reforçou que o diálogo deve promover a
paz, a justiça e a dignidade da pessoa humana.
Não
somente os Pontífices individualmente abordaram esse tema tão delicado.
Também nos documentos conciliares ele está posto. Assim é que lemos na
"Declaração "Nostra Aetate" (1965), do Concílio Vaticano II: “A Igreja
Católica nada rejeita do que nessas religiões há de verdadeiro e santo.
Considera com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses
preceitos e doutrinas, que, embora diferindo em muitos pontos do que ela
própria ensina e propõe, não raramente refletem um raio daquela Verdade
que ilumina todos os homens” (n. 2).
A
Constituição "Dogmática Lumen Gentium" (1964), n. 16, também elaborada
durante os debates do Concílio Vaticano II, reconhece que outras
religiões “buscam o Deus desconhecido” e que o Espírito Santo age
misteriosamente fora das fronteiras visíveis da Igreja.
A Teologia não ficou à margem dessa discussão eclesiástico-pastoral.
Karl
Rahner, teólogo de nomeada, (1904–1984) desenvolveu a ideia dos
“cristãos anônimos”, ou seja, a possibilidade de que pessoas de outras
religiões, vivendo em retidão e abertura à graça, participem do plano
salvífico de Cristo. Essa não é uma ideia bem vista pela maioria
católica, porque abstrai a centralidade da Igreja como uma comunidade de
crentes.
Outro grande teólogo do século XX, Hans
Urs von Balthasar (1905–1988): ressaltava que o diálogo com outras
religiões é oportunidade de testemunho da beleza e da verdade de Cristo,
sem concessões ao relativismo.
O extraordinário
pensador católico, o padre Henri de Lubac (1896–1991) via o diálogo como
meio de descobrir no coração das outras tradições “sementes do Verbo”
(semina Verbi), expressão já usada pelos Padres da Igreja em escritos
dados à lume nos primeiros anos do Cristianismo.
Não
se pode olvidar o fato de que em vários documentos foram emitidos
firmes posicionamentos de Papas e teólogos católicos que manifestam
reserva ou reprovação ao ecumenismo, entendido este como relativização
da verdade. O ponto central é sempre o mesmo: só há sentido em um
ecumenismo verdadeiro se ele culminar no “retorno à única Igreja de
Cristo” — a Igreja Católica Apostólica Romana.
Pio
XI, na "Encíclica Mortalium Animos" (1928), documento clássico sobre o
assunto, rejeita o ecumenismo como tentativa de unir cristãos em torno
de um “mínimo denominador comum”. Ali está escrito: “A Sé Apostólica
nunca permitiu a seus filhos assistir a congressos de não católicos,
porque a união dos cristãos não pode procurar-se de outra forma senão
promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de
Cristo.” (n. 10) Portanto, Pio XI deixa claro que a única forma legítima
de unidade é o retorno à Igreja Católica.
Na
Encíclica "Humani Generis" (1950), o Papa Pio XII condena erros do
“irenismo” teológico (corrente que buscava suavizar ou ocultar
diferenças doutrinárias em nome da unidade). Leiamos: “Alguns,
desviando-se do reto caminho, crêem que podem aproximar melhor os que
diferem, diminuindo as diferenças que existem entre eles e a Igreja. (…)
Mas, na realidade, isto causa ruína, não edificação.” (n. 11).
O
próprio São João Paulo II, ainda que defensor do diálogo, em discursi à
Cúria Romana, pôs um pé atrás e advertiu contra falso ecumenismo: “O
verdadeiro ecumenismo não consiste em esconder ou diminuir a verdade,
mas em proclamá-la integralmente."
Da mesma forma, alguns teólogos se posicionam contra o relativismo que está na base do movimento ecumênico.
Cornelius
Lapide, exegeta jesuíta, que viveu entre a segunda metade do seculo XVI
e o início do século XVII, explicava que a unidade da Igreja é
indivisível, e qualquer proposta de “igualar” seitas à verdadeira fé era
contrária ao Evangelho.
Outro grande teólogo, o
dominicano Reginald Garrigou-Lagrange (1877–1964) era crítico do
modernismo teológico e via no ecumenismo uma ameaça à integridade da
doutrina católica, por tentar conciliar fé e erro no mesmo plano.
O
conservador Mons. Marcel Lefebvre (1905–1991), fundador da cismática
Fraternidade São Pio X, denunciou após o Concílio Vaticano II, o
“ecumenismo liberal”, que segundo ele relativizava a verdade e colocava a
Igreja Católica como “uma Igreja entre muitas”.
Diante
das muitas manifestações de teólogos e do magistério da Igreja, creio
que os católicos podem tomar como certo a constatação de que enquanto o
ecumenismo pode enfraquecer as convicções em nome de uma unidade
forçada, o diálogo interreligioso permite cooperação sem confusão,
respeito sem sincretismo, e convivência sem perda de identidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário