terça-feira, 23 de setembro de 2025

Ecumenismo e Diálogo Interreligioso: distinções necessárias

 

                                                                                
Barros Alves 

Leio mais uma vez um  pequeno livro - "DIALÉTICA DA SECULARIZAÇÃO: SOBRE RAZÃO E RELIGIAO - contendo textos que resultaram de um diálogo entre o filósofo Jürgen Habermas e o então Cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI. ocorrido em 2004, na Academia Católica da Baviera. O debate entre dois intelectuais antípodas do mais alto nível, um filósofo ateu e um teólogo que ao tempo presidia o mais importante Dicastério (então Congregação), o órgão defensor da fé católica no Vaticano,  remeteu-me a uma questão antiga, mas que continua central no debate atual que aborda as "reflexões sobre a estrutura do diálogo  interreligioso no mundo", consoante lembra o padre e filósofo Florian Schüller. Ecumenismo e diálogo interreligioso quase sempre  são colocados dentro do mesmo recipiente desse debate. Porém,  é necessário, segundo meu modesto entendimento,  se definir as linhas divisórias que aclaram as diferenças.
 A questão é delicada, mas comporta algumas observações. É importante compreender a diferença entre ecumenismo e diálogo interreligioso, pois embora muitas vezes sejam confundidos, tratam de propostas distintas. O ecumenismo busca a união das diversas denominações cristãs em torno de um suposto núcleo comum de fé, minimizando ou relativizando diferenças doutrinárias fundamentais.  O movimento ecumênico intenta colocar em segundo plano verdades essenciais de cada tradição e, desse modo,  corre o risco de diluir a identidade de cada confissão religiosa, transformando a unidade em uniformidade artificial. Por isso, o ecumenismo deve ser visto com cautela, pois pode levar à perda da clareza doutrinal e da fidelidade às convicções originais.
Por seu turno, o diálogo interreligioso, segundo entendo, se apresenta como caminho mais legítimo e fecundo. Ele não pretende uniformizar crenças, mas sim promover o respeito mútuo, a convivência pacífica e a colaboração entre diferentes religiões em questões éticas, sociais e humanitárias. Nesse processo, cada tradição permanece fiel à sua identidade, sem renunciar ao que crê, mas se abre para escutar e compreender o outro. Assim, o diálogo interreligioso fortalece a paz, a justiça e a cooperação entre os povos, sem comprometer a integridade da fé de cada comunidade.
Esse debate se complica quando consultamos documentos basilares da Igreja Católica Apostólica Romana, que nunca foram revogados e, portanto, continuam como faróis a iluminar a caminhada dos católicos. A Igreja Católica, na condição de  mãe e mestra ("Mater et Magistra" é título de Encíclica papal), possui a plenitude da verdade revelada por Cristo. Portanto, só há sentido verdadeiro no ecumenismo se ele culminar na plena conversão das demais denominações cristãs ao seio da Igreja Católica. Qualquer tentativa de ecumenismo que relativize a verdade da fé, colocando todas as confissões no mesmo patamar, esvazia a missão da Igreja e deturpa o ensinamento de que “extra Ecclesiam nulla salus” — fora da Igreja não há salvação. Esses pontos são amainados na prática, mas continuam vivos na doutrina e prontos para serem usados diante de quaisquer dúvidas ou impasses.
Por outro lado, o diálogo interreligioso pode e deve ser valorizado, não como negociação de verdades, mas como espaço de respeito, convivência e cooperação prática em questões sociais, éticas e humanitárias. Esse diálogo permite colaboração em favor da dignidade humana e da paz, sem comprometer a identidade católica nem diluir a fé em Cristo.
Assim, enquanto o ecumenismo só se justifica como caminho de retorno dos afastados à verdadeira Igreja de Cristo, o diálogo interreligioso é instrumento legítimo de convivência harmoniosa com quem não partilha da mesma fé, sem jamais abrir mão da missão evangelizadora da Igreja Católica.
Por oportuno, no concernente ao palpitante tema devo lembrar a palavra de São João Paulo II, na Encíclica "Redemptoris Missio" (1990), n. 55: “O diálogo interreligioso faz parte da missão evangelizadora da Igreja. Entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, ele não se opõe à missão 'ad gentes', mas está em íntima relação com ela e é uma de suas expressões.” anteriormente, em 1986, o Papa havia promovido o Encontro de Assis, que reuniu líderes de várias religiões para rezar pela paz, reforçando que o diálogo não é relativismo, mas busca de fraternidade. Lembro-me que na época o Cardeal Ratzinger, um "cão de guarda" da fé católica e homem da confiança de João Paulo II,  foi questionado pelo gesto do papa conservador  haver "rezado com"  líderes religiosos de crenças distantes da Igreja Católica, como os muculmanos. Ratzinger sabiamente respondeu que o Papa não "rezou com". Ele "rezou junto de..."
O Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé  hoje chamado Dicastério, foi eleito para sentar no trono papal. Reconhecido como um dos mais importantes teólogos da Igreja Católica no século XX, em Discurso à Cúria Romana (2006, assim se manifesta: “O diálogo interreligioso é parte do diálogo entre culturas e não pode ser separado dele. Não se trata de renunciar à verdade, mas de procurar sinceramente o que é justo e bom junto com os outros.” Bento XVI sempre insistiu que o diálogo deve estar fundamentado na verdade e na razão, nunca em relativismos. De igual modo manifestou-se o Papa Francisco na Exortação Apostólica "Evangelii Gaudium: (2013), n. 250: “O diálogo interreligioso é uma condição necessária para a paz no mundo, e, portanto, é um dever para os cristãos, assim como para outras comunidades religiosas.”
No "Documento sobre a Fraternidade Humana" (Abu Dhabi, 2019), assinado com o Grande Imã da Universidade-Mesquita de Al-Azhar, reforçou que o diálogo deve promover a paz, a justiça e a dignidade da pessoa humana.
Não somente os Pontífices individualmente abordaram esse tema tão delicado. Também nos documentos conciliares ele está posto. Assim é que lemos na "Declaração "Nostra Aetate" (1965), do Concílio Vaticano II: “A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões há de verdadeiro e santo. Considera com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas, que, embora diferindo em muitos pontos do que ela própria ensina e propõe, não raramente refletem um raio daquela Verdade que ilumina todos os homens” (n. 2).
A Constituição "Dogmática Lumen Gentium" (1964), n. 16, também elaborada durante os debates do Concílio Vaticano II, reconhece que outras religiões “buscam o Deus desconhecido” e que o Espírito Santo age misteriosamente fora das fronteiras visíveis da Igreja.
A Teologia não ficou à margem dessa discussão eclesiástico-pastoral. 
Karl Rahner, teólogo de nomeada, (1904–1984) desenvolveu a ideia dos “cristãos anônimos”, ou seja, a possibilidade de que pessoas de outras religiões, vivendo em retidão e abertura à graça, participem do plano salvífico de Cristo. Essa não é uma ideia bem vista pela maioria católica, porque abstrai a centralidade da Igreja como uma comunidade de crentes.
Outro grande teólogo do século XX, Hans Urs von Balthasar (1905–1988): ressaltava que o diálogo com outras religiões é oportunidade de testemunho da beleza e da verdade de Cristo, sem concessões ao relativismo.
O extraordinário pensador católico, o padre Henri de Lubac (1896–1991) via o diálogo como meio de descobrir no coração das outras tradições “sementes do Verbo” (semina Verbi), expressão já usada pelos Padres da Igreja em escritos dados à lume nos primeiros anos  do Cristianismo.
 Não se pode olvidar o fato de que em vários documentos foram emitidos firmes posicionamentos  de Papas e teólogos católicos que manifestam reserva ou reprovação ao ecumenismo, entendido este como relativização da verdade. O ponto central é sempre o mesmo: só há sentido em um ecumenismo verdadeiro se ele culminar no “retorno à única Igreja de Cristo” — a Igreja Católica Apostólica Romana.
Pio XI, na "Encíclica Mortalium Animos"  (1928), documento clássico sobre o assunto, rejeita o ecumenismo como tentativa de unir cristãos em torno de um “mínimo denominador comum”. Ali está escrito: “A Sé Apostólica nunca permitiu a seus filhos assistir a congressos de não católicos, porque a união dos cristãos não pode procurar-se de outra forma senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo.” (n. 10) Portanto, Pio XI deixa claro que a única forma legítima de unidade é o retorno à Igreja Católica.
Na Encíclica "Humani Generis" (1950), o Papa Pio XII condena erros do “irenismo” teológico (corrente que buscava suavizar ou ocultar diferenças doutrinárias em nome da unidade). Leiamos: “Alguns, desviando-se do reto caminho, crêem que podem aproximar melhor os que diferem, diminuindo as diferenças que existem entre eles e a Igreja. (…) Mas, na realidade, isto causa ruína, não edificação.” (n. 11).
O próprio São João Paulo II, ainda que defensor do diálogo, em discursi à Cúria Romana, pôs um pé atrás e advertiu contra falso  ecumenismo: “O verdadeiro ecumenismo não consiste em esconder ou diminuir a verdade, mas em proclamá-la integralmente."
Da mesma forma, alguns teólogos se posicionam contra o relativismo que está na base do movimento ecumênico.
Cornelius Lapide, exegeta jesuíta, que viveu entre a segunda metade do seculo XVI e o início do século XVII, explicava que a unidade da Igreja é indivisível, e qualquer proposta de “igualar” seitas à verdadeira fé era contrária ao Evangelho.
Outro grande teólogo, o dominicano Reginald Garrigou-Lagrange (1877–1964) era crítico do modernismo teológico e via no ecumenismo uma ameaça à integridade da doutrina católica, por tentar conciliar fé e erro no mesmo plano.
O conservador Mons. Marcel Lefebvre (1905–1991), fundador da cismática  Fraternidade São Pio X, denunciou após o Concílio Vaticano II, o “ecumenismo liberal”, que segundo ele relativizava a verdade e colocava a Igreja Católica como “uma Igreja entre muitas”.
Diante das muitas manifestações de teólogos e do magistério da Igreja, creio que os católicos podem tomar como certo a constatação de que enquanto o ecumenismo pode enfraquecer as convicções em nome de uma unidade forçada, o diálogo interreligioso permite cooperação sem confusão, respeito sem sincretismo, e convivência sem perda de identidade.


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