Hoje, 20 de novembro, comemora-se no Brasil o Dia da Consciência Negra. A data carrega pertinência para que tratemos do assunto em área pouco explorada, qual seja a análise crítico-literária de aspectos da literatura de cordel. Em face disto é que trago à baila este breve comentário sobre livro de autoria do jornalista Alberto Perdigão, uma coletânea de artigos subordinados ao título de “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel.” De logo, deixo claro ao leitor que eu e o autor da obra estamos politicamente em lados diametralmente opostos. O mesmo, quero crer, não ocorre quanto às nossas visões estéticas da literatura, em especial da literatura de cordel, uma das mais belas e importantes manifestações do cancioneiro popular nordestino, que herdamos das nossas raízes ibéricas. Por necessário, no caso dessa apreciação de obra da lavra do competente jornalista, vale salientar o alinhamento que tenho com o pensamento de Tristão de Athayde quanto à crítica literária, que noutro pé e sobre outro tema escreveu frase que contém verdade universal: “A verdadeira atitude religiosa exige do crítico, acima de tudo, o respeito pela verdade. Não a ‘verdade’ revelada por Deus, pois esta nada tem com as qualidades ou defeitos da literatura a ser avaliada. Mas, a verdade revelada pela própria obra e por seu autor.”
A literatura de cordel, tantas vezes vista apenas como folclore, ganha nova luz no livro “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel”, de Alberto Perdigão. Nessa coletânea de ensaios breves, o jornalista e pesquisador cearense reconstrói a presença histórica da negritude no cordel e demonstra como o folheto pode atuar enquanto mídia popular de resistência, memória e afirmação identitária. A obra, que dialoga com conceitos da descolonialidade e da folkcomunicação, amplia significativamente o entendimento do cordel como instrumento político. Perdigão parte de uma premissa ousada: o cordel não é apenas poesia narrativa, mas também um meio de comunicação alternativo capaz de expressar vozes historicamente silenciadas. A análise desconstrói a ideia de que o cordel seria, por essência, reprodutor de estereótipos raciais. Pelo contrário, o autor evidencia uma tradição de folhetos que exaltam personagens negras, denunciam violências e reinterpretam episódios como escravidão, abolição e lutas contemporâneas.
Cada capítulo funciona como um estudo independente, mas todos convergem para uma tese comum: a de que o cordel é um veículo privilegiado para narrar a experiência negra sob a perspectiva popular. A combinação entre análise textual, contextualização histórica e referenciais teóricos contemporâneos dá ao livro densidade acadêmica e Método rigoroso, sem perder o vínculo com a linguagem e as práticas da cultura do cordel.
Como toda obra de recorte temático, a seleção de folhetos pode privilegiar exemplos que reforçam a tese central. Há ainda o desafio de transpor a complexidade teórica da descolonialidade para o universo dos cordelistas tradicionais, que nem sempre dialogam com a academia. Mesmo assim, a obra se sustenta pelo vigor das análises e pela contribuição inédita ao campo da comunicação popular e dos estudos raciais.
Ao sistematizar a presença negra no cordel, Perdigão não apenas ilumina uma dimensão pouco estudada dessa tradição literária, como também oferece material valioso para professores, pesquisadores e poetas populares. O livro sugere que o cordel, divulgado e vendido nas feiras, nas praças, nas escolas, nas redes, em seminários e exposições acadêmicas, continua sendo um espaço vivo de disputa simbólica e construção de cidadania.
Um dos méritos mais significativos da obra de Perdigão é a defesa do cordel como fonte histórica e documental. Ao analisar folhetos escritos por poetas de diferentes épocas, o autor mostra que o cordel registra, à sua maneira, os sentimentos coletivos de comunidades negras que nem sempre aparecem nas versões oficiais da história. Nos folhetos sobre a escravidão, por exemplo, é possível identificar tanto as dores quanto as estratégias de resistência presentes nas narrativas populares. Esse caráter documental coloca a literatura de cordel lado a lado com outras formas de arquivo da memória negra, como músicas, oralidades, crônicas e tradições religiosas; mas com um diferencial: a circulação ampla, barata e imediata dos folhetos. Assim, o cordel funciona como um “jornal do povo”, sensível às questões raciais muito antes de elas se tornarem pauta das grandes redações. Perdigão destaca que personagens como rainhas africanas, guerreiros, líderes quilombolas e heroínas de matriz afro-brasileira estão presentes em muitos folhetos. Essa presença, ainda que reduzida diante da imensidão da produção cordelística, é simbólica: ela reequilibra imaginários e contribui para a construção de orgulho identitário. Ao tratar dessas personagens, o autor evidencia a capacidade do cordel de ressignificar papéis sociais. Em vez de reproduzir a visão eurocêntrica predominante em parte do cordel clássico, ele mostra como muitos poetas populares reelaboraram a história, devolvendo protagonismo às figuras negras e atribuindo-lhes dignidade e grandeza.
Outro ponto forte do livro é sua utilidade prática no campo educacional. Em tempos em que a discussão sobre educação antirracista ganha força, especialmente a partir da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira pela Lei 10.639/03, a obra de Perdigão oferece material abundante para escolas, professores e gestores culturais. Os folhetos analisados trazem histórias acessíveis, linguagem popular e forte apelo visual, elementos que favorecem o diálogo com estudantes. Ao mesmo tempo, a leitura crítica proposta pelo autor permite que educadores utilizem o cordel como instrumento pedagógico para tratar racismo estrutural, identidade, memória e resistência.
Um dos aspectos mais instigantes do livro é a ponte que Perdigão estabelece entre o mundo acadêmico e o universo popular. O cordel, muitas vezes relegado a um folclorismo superficial, é tratado aqui como objeto sério de estudo, sem que isso reduza sua espontaneidade. A pesquisa rigorosa convive com o reconhecimento da oralidade, da sabedoria popular e do improviso dos poetas. Esse equilíbrio, nem sempre presente na crítica acadêmica, reforça a credibilidade do autor e amplia o alcance da obra, que pode ser lida tanto por pesquisadores quanto por cordelistas, jornalistas, agentes comunitários e leitores interessados na cultura brasileira. É fácil constatar a leveza da escritura jornalística no texto de Perdigão, que para o bem do leitor, se desveste da estéril linguagem academicista.
A maior contribuição de “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” talvez seja sua capacidade de abrir caminhos. A obra sugere novos recortes temáticos, novas formas de leitura e novos campos de pesquisa. Ao demonstrar que a negritude está viva e atuante dentro do cordel, Perdigão convida outros estudiosos a investigar gênero, religiosidade, política, direitos humanos, economia e até questões ambientais por meio dos folhetos. Além disso, o livro encoraja poetas e editoras de cordel a explorarem com mais força temas ligados à identidade negra, favorecendo a produção contemporânea e fortalecendo discursos de pertencimento. Apesar de tratar de temas densos, tais como racismo, descolonialidade, entre outros, Perdigão escreve com clareza jornalística. Ele evita jargões desnecessários e conduz o leitor com didatismo, mesmo quando o assunto exige aprofundamento teórico. O texto é direto, sem perder a elegância; firme, sem perder a sensibilidade. A opção pela estrutura em artigos independentes permite diversidade de abordagens, mas também dá ritmo ao livro: cada capítulo abre uma nova janela para temas que vão da representação de heroínas negras à análise de folhetos que narram a violação de direitos humanos. A maturidade intelectual do autor se revela justamente nessa capacidade de fazer pontes: entre poesia e política, entre o popular e o acadêmico, entre tradição e contemporaneidade.
Num momento em que o cordel experimenta revitalização, impulsionado por coletivos, feiras culturais, editais e pelo acesso digital, o livro de Perdigão chega como obra de referência. Ele responde a uma demanda contemporânea, qual seja a de compreender como a cultura popular aborda questões raciais num país ainda marcado pelo racismo estrutural. A crescente presença de mulheres cordelistas, poetas negros, jovens autores e coletivos periféricos demonstra que o cordel está se diversificando. A obra de Perdigão contribui para isso ao oferecer legitimidade acadêmica e visibilidade crítica a essa produção. Hoje, quando se fala em cordel e negritude, a obra de Alberto Perdigão já se coloca como referência obrigatória, tanto para pesquisadores quanto para militantes do movimento negro e para poetas populares. “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” é, em última instância, um gesto de coragem intelectual e de reparação cultural. Ao iluminar um território onde por séculos a presença negra foi decisiva, mas nem sempre reconhecida, Alberto Perdigão devolve ao cordel a inteireza de sua própria história. Seu livro recorda que nenhuma tradição popular é neutra, mas todas carregam disputas, silêncios e heranças profundas. Perdigão desnaturaliza estereótipos, amplia horizontes críticos e demonstra que o cordel, quando visto sem véus, é também espaço de afirmação, dignidade e memória. Trata-se de obra que não apenas enriquece os estudos sobre a cultura nordestina, mas também convoca leitores, pesquisadores e poetas a revisitarem o passado com honestidade e a alimentarem, no presente, uma tradição mais justa, plural e fiel às vozes que a construíram. Enfim, “Pretas e Pretos na Literatura de Cordel” é um livro necessário para quem deseja compreender não apenas o cordel, mas o próprio Brasil que pulsa nas ruas e no coração do povo. E confirma Alberto Perdigão como uma das vozes mais importantes da pesquisa sobre cordel na atualidade.


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