quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A BATINA, UM SÍMBOLO ABANDONADO

                                                                                         

Barros Alves 

A história da humanidade é a história da imaginação, da metáfora, do símbolo.  Os símbolos contêm inexoravelmente um substrato espiritual. O “Penso, logo existo” de Descartes, está para além dos estados da razão e reside na imaginação criadora do ser humano, que ao longo do tempo alcançou a forma de ciência, no sentido iluminista do termo. Como lembra o teólogo e mitologista Jean Chevalier, os símbolos estão no centro, constituem o cerne da vida imaginativa. Revelam os segredos do inconsciente, conduzem às mais recônditas molas da ação, abrem o espírito para o desconhecido e o infinito. Não deve, destarte, ser confundido com a metáfora.  Todas as ciências do homem e todas as artes, bem como as técnicas que delas procedem, deparam-se com os símbolos em seu caminho, os quais interessam – observa Chevalier – às mais diversas disciplinas, tais como a História das Civilizações e das Religiões, a Lingüística, a Antropologia Cultural, a Crítica de Arte, a Psicologia, a Medicina etc. Entre as manifestações culturais intrinsecamente inerentes ao ser humano, assoma como a mais alta, larga e profunda, a religiosidade. Esta comporta, naturalmente e essencialmente, todos os símbolos que intentam representar o sagrado e o divino na imanência do cotidiano das pessoas.

Valem-se as religiões de uma infinidade de símbolos com o objetivo de banhar a humanidade com os eflúvios do espírito, das dimensões transcendentais. Basta abrir qualquer livro sagrado de qualquer religião para dele espargir-se sobre o leitor uma profusão de símbolos. A Bíblia, Livro Sagrado dos cristãos, está grávida de simbolismos a confirmar que “a expressão simbólica traduz o esforço do homem para decifrar e subjugar um destino que lhe escapa através das obscuridades que o rodeiam.” Afora a simbologia que se espraia a cada palavra de livros sagrados, a realidade religiosa do ser humano exige o símbolo como instrumento de diferenciação entre o profano e o sagrado. Daí que, entre tantos símbolos das religiões, a vestimenta sacerdotal constitui, de certa forma, condição sine qua non para o diferenciamento.

A Igreja Católica estabeleceu ao longo do tempo, com seguros fundamentos bíblicos, a batina como identificadora daqueles que foram escolhidos por Deus para o sagrado sacerdócio. A batina expressa as qualidades e virtudes daquele que a envergam. Significa amor, solidariedade, paz, firmeza na fé, confiança, piedade cristã. Todavia, após o malfadado Concílio Vaticano II, o             que se viu foi o abandono desse símbolo que representava também a Igreja Católica, pois onde estava um padre vestido de batina ali estava a Igreja. Nos dias hodiernos, ao que parece, os novos padres têm vergonha de vestir a batina e só o fazem no púlpito porque, enfim, é o jeito...

Os padres formados antes do Concílio Vaticano II tinham a batina em grande conta. Eu me lembro que jamais vi em mangas de camisa o Monsenhor Antônio Vieira Costa, vigário da cidade de Cedro durante mais de quarenta anos. A minha mãe, Tereza Maria Alves, uma Nossa Senhora do Sertão, era quem consertava as pesadas batinas de linho preto, que o prelado vestia permanentemente, a suar às bicas sob um calor de até trinta e cinco graus. Eram padres que tinham compromisso com a simbólica batina, porque era como se fosse uma extensão física do compromisso para com a sacralidade da vocação sacerdotal.

Na década dos anos 1980 conheci outro padre que também tinha grande apreço pela batina. O Monsenhor Luís Ximenes, padre e poeta, cuidou do rebanho católico em Santa Quitéria, também durante cerca de quarenta anos. Aficcionado por trens, a maioria dos poemas e sonetos que escreveu trata do tema dos caminhos de ferro e das máquinas ferroviárias. Monsenhor Ximenes escreveu inspirado soneto enaltecendo a vestimenta sacerdotal. Subordinado ao título “Minha Batina”, ei-lo:

 

Deus me proteja para que jamais

Eu tenha a atroz visão, desventurada,

De trocar por outros ideais

Minha batina santa e imaculada.

 

A devoção que te consagro é tanta,

Por ti o meu amor é tão profundo,

Que só por ti abandonei o mundo,

Minha batina imaculada e santa.

 

E peço a Jesus Cristo todo dia

E a minha Mãe do Céu, Virgem Maria,

Que me conserve sempre a vocação.

 

Para que seja pela vida inteira

A minha esposa e minha companheira,

Minha batina do meu coração!

           

            Afirma com propriedade o Monsenhor Deusdedit de Araújo que “a batina denuncia a crentes e a incrédulos os discípulos do Mestre.” Ao não usar mais a batina, os “discípulos do Mestre” estão misturados à promiscuidade profana da sociedade moderna com seus modismos “fashions”. Padrecos cantores de música profana, “showmen” de calcinha apertada é o que se tem visto a pregarem uma teologia vesga nos meios de comunicação de massa. Esses desaprenderam de usar a batina, a qual como dizia o Papa João XXIII, deveria ser usada com dignidade por toda a parte, porque “o hábito talar, nobre e distinto, é a imagem da túnica de Cristo e sinal resplandecente da veste interior da graça.”

            Por final, brindo os leitores com um belo soneto da lavra do bispo Dom Francisco de Aquino Correa, que foi membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, versos igualmente intitulados “Minha Batina”:

           

Minha pobre batina, mal cerzida,

Tu vales mais que todos os amores,

Pois, negra embora, enches-me de flores

E de esperanças imortais da vida.

 

Com seus sorrisos escarnecedores

Zomba o mundo de ti, de ti duvida,

Porque não sabe a força que na lida

Tu me dás, do teu beijo aos resplendores.

 

Tu serenas do orgulho as brutas vagas,

E a mostrar-me do mundo a triste sina,

Toda a volúpia das paixões apagas.

 

Oh! Como o bravo envolto na bandeira,

Contigo hei de morrer, minha batina!

Ó minha heróica e santa companheira!

 

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