quarta-feira, 28 de setembro de 2022

UM LIVRO ESPECIAL PARA O PRESIDENTE DOS TRABALHADORES

                                                                                      


Barros Alves

Há não muito tempo em um país em que a população entediou-se com o modo de governar de um rei filósofo e poeta, que não dava bolas para a crítica e prezava tanto a liberdade de expressão quanto a literatura e a ciência, em detrimento de burocracias administrativas e querelas políticas, eis que esse povo “assistiu bestializado” (créditos para José Murilo de Carvalho) a substituição do reinado pela forma republicana de governo, resultado de um golpe de Estado liderado por militares e intelectuais positivistas. O rei não reagiu e a nação ruiu. Daquele tempo a esta parte a ré pública instalada nesse país só se prostituiu a cada ano. Mudou de trajes várias vezes, mas continuou ultrajada, o corpo naturalmente se depauperando, carcomido pelas mazelas econômicas e sociais, sem que nenhuma plástica lhe imprima o efeito desejado. Até porque as intervenções só consertam os danos superficialmente; a carcaça adoentada de males crônicos ou circunstanciais continua a mesma.

            Quero lhes contar uma história de um entre os muitos governantes desse “país caracterizado pela mestiçagem (Darcy Ribeiro), cuja promiscuidade racial dá o tom da formação cultural do seu povo. Mais uma vez o cansaço em face de governantes metidos a sabichões, bateu à porta dessa gente e eles resolveram inovar elegendo para tomar as rédeas do poder um dos seus pretensos assemelhados. O dito cujo, ladino e malaca, houvera há muito saído do chão de fábrica e galgara postos de representação no sindicato de sua categoria laborativa. Acenou para todos com a esperança de tão almejados dias melhores. Acabar com a pobreza foi promessa reiterada. Enfim, prometeu mundos e fundos. No final roubou até os fundos de pensão. Mas aí são outros quinhentos. O certo é que o homem sagrou-se vitorioso, um anjo caído do céu, um mágico da governabilidade, um mito! Minto. O mito é o outro.

            Vejamos, pois, como agia essa personagem que se tornou um ícone do sistema político e administrativo brasileiro, um exemplar melhorado de muitos dos seus antecessores. Menos discreto, é bem verdade. Mas, um exemplo de governante tão presente ao longo da história do Brasil. Conto-lhes um episódio do “modus faciendi” desse gestor endeusado por grande parte da “intelequitualidade” e da plebe do país. Esta história não é de ouvir dizer. Todos a conhecem, porque foi reafirmada em várias oportunidades por gente da intimidade do protagonista, o incensado governante.

Vamos aos fatos. Certa feita, dirigentes de uma poderosa empresa multinacional, sabedores de que o tal governante era homem preocupado com o povo pobre de sua nação, resolveu procurá-lo com vistas a contribuir na solução de moradias populares e outras obras de infra-estrutura necessárias ao desenvolvimento, a serem construídas principalmente em áreas subdesenvolvidas do país que, apesar de riquíssimo em recursos naturais e grande exportador de comodities, permanecia social e economicamente muito aquém de outras nações da mesma idade, como os Estados Unidos, por exemplo.

            Os CEOs da multinacional sabiam que o governante era iletrado, porém perspicaz, astucioso e esperto no sentido mais amplo que o termo possa comportar. Determinados a concluir o negócio, procuraram saber dos assessores próximos do governante qual o principal gosto dele. Foram informados que apesar de analfabeto, não dado, portanto, a leituras, o líder político gostava de demonstrar apreço pelos livros, atendendo orientação dos doutores universiOtários que haviam contribuído decisivamente para a ascensão dele ao poder e lhe prestavam permanente orientação. Souberam também, por intermédio dos assessores, que o chefe da nação tinha dois outros gostos, verdadeiros vícios. Um, a danada da cachaça. Por uma dose da branquinha seria capaz de atravessar o oceano a nado; o outro vício, de trato mais delicado, foi sussurrado muito cuidadosamente ao ouvido do chefe da delegação empresarial, com a recomendação de que, sem dúvida, era o gosto mais agradável ao paladar político do presidente amado pelos trabalhadores.  

Os dirigentes da grande empresa alegraram-se com as informações e marcaram audiência com o governante, para encetar as devidas negociações. Seria de bom alvitre oferecer um valioso presente a um homem tão especial, que saiu das classes menos favorecidas do seu país e alcançou o comando do Estado. Tiveram uma ideia levando em consideração a informação lhes foi sussurrada ao ouvido. Receando que uma oferta direta de algo vantajoso pudesse ferir a suscetibilidade de homem tão honesto às vistas do povo, e já sabedores de sua vaidade de pseudo-leitor, resolveram os líderes da multinacional mandar encadernar uma quantidade bastante expressiva de notas de dólares, dando-lhes um formato de volumoso livro em cuja capa lia-se em letras douradas: HISTÓRIA SINCERA DO BRASIL.  Durante a audiência concedida pelo presidente, os portadores do livro, depois de muitos salamaleques e melosidades verbais, dirigiram-se ao “homem mais honesto do mundo”:

- “Senhor presidente, sabedores de o quanto amais o vosso país e o vosso povo e o quanto adorais uma boa leitura, de logo, gratos pela atenção que ides dar à nossa empresa, queremos de bom grado presentear-vos com este livro que trata de fatos inéditos protagonizados por heróis de vossa pátria, assim como vós o sois”.

O presidente não demonstrou nenhuma emoção. Pegou o livro e começou a folheá-lo impassivelmente. Naquele momento os visitantes observaram que o presidente só tinha quatro dedos em uma das mãos e os seus olhos brilhavam como uma estrela matutina diante de obra tão rara. Então, sem demonstrar a mínima surpresa diante de livro com tão insólito recheio, o homem de nove dedos nas mãos respondeu:

- “Muito vos agradeço, mas urge que se faça um reparo. Como leitor e conhecedor da bibliografia da nossa história pátria, tenho certeza de que essa História Sincera do Brasil foi publicada em mais de um volume. E eu detesto obras incompletas”.

O chefe da embaixada de empresários junto ao presidente foi rápido na resposta:

- “Senhor presidente, não descuidamos desse detalhe. Os outros volumes estão no prelo e chegarão oportunamente às mãos de V. Exa.”

O presidente coçou a barba com a mão de quatro dedos, sorriu agradecido e encerrou a audiência:

- “Certamente uma nova edição de obra basilar para nossa historiografia, merece apêndices e adições relevantes.”

Ao saírem da audiência, um dos empresários comentou para seus companheiros:

- “Eis o que nos vai custar uma informação incompleta. Deveríamos ter nos assenhoreado com os assessores do espertalhão, o grau de sua bibliomania nesses assuntos que precedem negociações tão importantes para o povo.” Todos riram à bandeiras despregadas.

OBS: Texto foi adaptado de anedota cujo protagonista é o sultão Abdul-Hamid (1842/1917), o qual reinou na Turquia de 1876 a 1909, ano em que foi deposto.

  

 

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