segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A REPÚBLICA QUE NUNCA FOI

                                                                                          

Barros Alves

Desde o limiar da década de 1880 os militares, que engrossaram o cangote depois da Guerra do Paraguai, faziam exigências ao poder civil e à proporção que não viam seus interesses atendidos na medida das reivindicações, criava-se um ambiente de insatisfação na tropa. Deodoro da Fonseca, velho general, era o líder dos militares. Dirigiu-se, por carta, várias vezes a Pedro II expressando suas lamúrias, mas o imperador, tranqüilo e discreto na sua posição de magistrado, não deu ouvidos ao comandante. O problema, institucionalmente, era do gabinete que governava o País. Enquanto o problema se arrastava, os políticos se arregimentavam para os embates parlamentares e políticos, em especial o pequeno núcleo republicano formado por uma elite intelectual que se arrimava no pensamento de Augusto Comte. Um grupo popularmente inexpressivo, mas atuante na Imprensa e que tinha a simpatia dos quartéis, alinhados com o positivismo das cabeças republicanas.

Pedro II não ia bem de saúde e vivia mais a respirar o ar serrano de Petrópolis do que a suportar o bulício e as fofocas da Corte. Enquanto isso lideranças republicanas conspiravam, estimulados pela questão militar e pelos fazendeiros insatisfeitos com a libertação dos escravos em 1888. No ano seguinte, cai o gabinete parlamentarista conservador do Ministro João Alfredo, que foi substituído pelo gabinete liberal liderado pelo Visconde de Ouro Preto. A conjuntura estava favorável à ação da propaganda republicana. Nos jornais e na seara da articulação política atuavam Rui Barbosa, Quintino Bocayuva, Aristides Lobo, Silveira Martins, entre outros; nos quartéis assomavam as figuras de Deodoro da Fonseca, Benjamim Constant, Eduardo Wandenkolk, Frederico Solon, Francisco Glicério. Uma personagem que se manteve por muito tempo discreta foi o ajudante-general do Exército Floriano Peixoto, aparentemente leal ao Imperador e à Monarquia, assim como o seu comandante Deodoro da Fonseca. “Floriano era não somente dedicado à pessoa do imperador, como um amigo grato da família do Visconde de Ouro Preto”, lembra Heitor Moniz. O chefe do gabinete governante possivelmente faria de Floriano Ministro da Guerra em substituição ao Visconde de Maracaju. Deodoro e Floriano sempre manifestação apreço e respeito pelo imperador Pedro II.

A crise política no governo de Ouro Preto avançou de tal forma que ele ficou totalmente desprestigiado. Os líderes militares, àquela altura decidiram que o governo não podia continuar. Mas, derrubar-se-ia o gabinete ou a monarquia? “Não havia unanimidade entre os participantes da frente em relação à derrubada do regime monárquico e tampouco em relação ao rompimento de seus compromissos internos e externos.” (Hélio Silva). Rui Barbosa defendia que a ação de deposição fosse realizada “com o imperador se possível, sem o imperador se necessário.” Deodoro foi convidado a liderar a aventura. Hesitou por dois motivos: primeiro porque estava bastante adoentado. Delegara, inclusive, ao tenente-coronel Benjamim Constant a tarefa de receber as lideranças republicanas. Em segundo lugar, Deodoro temia uma reação favorável ao imperador por parte de Floriano Peixoto. Quanto ao problema de saúde poderia ser superado com grande esforço, como fê-lo no momento aprazado. Mas, e quanto a Floriano? Falar-lhe sobre a conspiração que já estava nos momentos conclusos não seria um risco? Expor-lhe os planos não seria denunciar ao governo toda a articulação com o consequente fracasso da empreitada? Não havia outro nome para ir ter com Floriano a não ser Deodoro. Ele não se fez de rogado.

Heitor Moniz conta: “Deodoro tomou a si ainda uma vez a tarefa mais pesada. Pediu a Floriano Peixoto que lhe concedesse uma entrevista. A 13 de novembro os dois se encontram numa conferência decisiva. Deodoro expôs ao general tudo quanto havia. O movimento estava preparado. Ele contava com todos os triunfos asseguradores do mais completo êxito e estava pessoalmente decidido, arrastando quaisquer consequências que pudessem vir, a pôr-se à testa da insurreição. Floriano não era homem de arriscar num terreno sem segurança, os passos que ia dar. Observou. Sugeriu um entendimento. Fez reservas. Mas, ao despedir-se de Deodoro, tranqüilizava-o, afinal, quanto à sua solidariedade: - Enfim, se a coisa é contra os casacas, lá tenho a minha espingarda velha...”

Informado da gravidade da situação, D. Pedro II desce de Petrópolis sem atentar para o perigo que corria não o gabinete, mas a monarquia. Não se compreende que um homem com a experiência e a prudência de um estadista como o imperador, ainda tenha insistido na permanência de Ouro Preto à frente do governo, mesmo depois de Deodoro ter dado um ultimato ao gabinete. O próprio ministro da Guerra declarara que uma reação à insurreição seria inútil. Ouro Preto fora conferenciar com Pedro II. Ambos julgavam que a exigência dos revoltosos era a derrubada do gabinete ministerial. Ao ser solicitado pelo imperador que continuasse à frente do governo, formando um novo ministério, em acordo com os insurretos, Ouro Preto responde: - “É impossível, senhor. À vista do ocorrido, faltam-me os meios de bem servir ao País e a V. Majestade; o gabinete está desprestigiado; sem o concurso da força armada, ou antes, hostilizado por ela, não posso responder pela ordem pública. O único serviço que neste momento me é dado prestar a V. Majestade é aconselhar a organização do novo ministério.”

Até aí, ao que parece, cairia apenas o gabinete de Ouro Preto. Na verdade, na noite do dia 14 de novembro, Deodoro ainda não se decidira se aceitaria a República. Porém, surgiu um problema prosaico, de ordem pessoal, que decisivamente contribuiu para que o general decidisse aliar-se com os republicanos aguerridos para derrubar a monarquia. Ao saber que Pedro II entrara em negociações com Silveira Martins com vistas à formação de um novo ministério, Deodoro embarcou na canoa. Explica-se a decisão com o registro do historiador Hélio Silva: “Deodoro e Silveira Martins eram inimigos desde quando o general estivera no rio Grande. Há uma explicação pitoresca, senão picaresca, dessa inimizade (...) O tribuno gaúcho era um belo homem, apaixonado por mulheres bonitas. Em campanha eleitoral, foi ter ao reduto da Baronesa do Triunfo, considerada, com razão, uma das mais belas moças de sua época. Encerrada a excursão, retira-se da estância da bela anfitriã com um ‘bota fora’ de honra, acompanhado até à porteira da fazenda por um cortejo à frente do qual cavalgava, galhardamente, a própria baronesa.”

Segue o relato: “Silveira Martins era um peão, como bom gaúcho, mas em face da emoção, ao picar as ilhargas da montaria, para fazê-la empinar, em um cumprimento galante, o animal assustou-se, o ginete desequilibrou-se e caiu estatelando-se no chão poeirento. Acorreram todos, desmontando prestes, inclusive a baronesa. Ao levantarem Silveira Martins, verificaram que ele havia partido uma perna. Repouso forçado de quarenta dias na estância da baronesa. O resto Silveira Martins confidenciou a Tobias Monteiro, na evocação saudosa de um romance de amor. Pois foi então no rastro desse incidente que chegou ao Rio Grande o novo comandante das Forças de Terra e Mar da Província, general Deodoro da Fonseca, moço, vistoso em seu uniforme de gala e, também, interessado pela baronesa. Mas, não foi bem sucedido na competição. Daí a rivalidade que tornaria inimigos o tribuno liberal e o general conservador.” Essa rivalidade foi, possivelmente, a gota d´água para a queda da monarquia em vez de cair somente o gabinete.

De fato, decidido a apoiar o movimento para apear o imperador do poder, ainda assim somente na noite do dia 15 de novembro, depois de todas as manifestações de populares liderados por José do Patrocínio, nas ruas do Rio de Janeiro; dos inflamados discursos de Benjamim Constant e outros tribunos republicanos prometendo a convocação de uma Assembleia Constituinte; da própria proclamação feita pelo Marechal no Campo de Santana, depois de tudo isso, só na noite de 15 de novembro é que Deodoro se decidiu pela República. No dia 16, às 15 horas, o chefe do movimento, doente e constrangido, envia ao imperador um ofício por intermédio do qual dá o prazo de 24 horas para que a família imperial deixe o território brasileiro. Não houve qualquer reação por parte dos monarquistas, a pedido do próprio imperador, um filósofo enfastiado do poder, que não saiu ao pai, e não quis ver derramado sangue de brasileiros.

Implantou-se a República nesses termos desastrados e desastrada ela continua até os dias atuais. Aliás, isto que temos nunca foi República no sentido conceitual do termo. Logo depois de instalado o regime, veio o afastamento de Deodoro e a ditadura de Floriano Peixoto, que com mão de ferro cassou liberdades, exilou e encarcerou  adversários, muitos dos quais republicanos de primeira hora como Rui Barbosa e Prudente de Morais. Luís Viana Filho, melhor biógrafo de Rui, diz que ao ver distanciando-se da barra o navio que levava a família real para a Europa, o jurisconsulto republicano encheu os olhos de lágrimas. O arrependimento não tardou. Sofreu na República aquilo que jamais sofrera sob a monarquia. Decepcionado, em 1910 pronuncia discurso no Senado, verberando a República, do qual se transcreve excerto que ficou famoso: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” Interessante é que nunca é citada a última frase do período: “Eis em que se transformou a República que eu ajudei a implantar no meu País.”

Cf. Bibliografia:

1.      O PODER MILITAR, de Hélio Silva. L&PM Editora, Porto Alegre-RS, 1984.

2.      DEODORO DA FONSECA (Coleção Os Presidentes), idem, Editora Três, São Paulo, 1983.

3.      NO TEMPO DA MONARQUIA, de Heitor Moniz. Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1929.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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