De
logo, remeto o caro leitor a dois livros que considero basilares para a
compreensão do processo de formação do cânon bíblico, assomando a
imprescindibilidade da tradição oral para as Sagradas Escrituras, a
contradizer o "sola scriptura" do ensino protestante. O professor
Alessandro Lima, ex-protestante convertido ao catolicismo, fundador do
site "Veritatis Splendor", publicou "O CÂNON BÍBLICO - A Origem da Lista
dos Livros Sagrados" (Editora ComDeus, 2007, 125 páginas). De Robert A.
Sungenis a Edições Cristo & Livros publicou em 2022 uma excelente
obra de teologia e apologética católica intutulada "NÃO SOMENTE PELAS
ESCRITURAS - Uma Crítica Católica da Doutrina Protestante do Sola
Scriptura." A obra original, publicada em inglês, é de 1998. Urge
lembrar que de par com livros desse gênero temos os documentos
conciliares e outros textos que formam o magistério da Igreja Católica,
em especial a Constituição Dogmática "Dei Verbum", promulgada pelo Papa
Paulo VI, em 18 de novembro de 1965.
Com
efeito, a tradição oral desempenhou um papel decisivo na formação do
cânon bíblico, constituindo-se como o primeiro meio de transmissão da
Revelação. Muito antes da fixação escrita, o povo de Israel preservava e
comunicava, de geração em geração, as experiências religiosas
fundamentais, como a libertação do Egito, a Aliança no Sinai, as
promessas aos patriarcas e os feitos dos profetas. Esses relatos não
eram apenas recordações históricas, mas expressões vividas e celebradas
na vida comunitária, especialmente no culto e nas assembleias
litúrgicas. Assim, a tradição oral garantiu a continuidade da fé e
serviu como critério de autenticidade: somente aquilo que correspondia à
experiência viva do povo de Deus e à sua memória coletiva era digno de
ser escrito e, posteriormente, reconhecido como inspirado.
No
cristianismo nascente, o mesmo processo se repetiu. Os ensinamentos e
gestos de Jesus, assim como o testemunho dos apóstolos, circularam
primeiramente pela oralidade. Os Evangelhos, por exemplo, são fruto de
uma tradição oral que foi progressivamente fixada por escrito, sem
perder a autoridade transmitida pelas comunidades apostólicas. Nesse
sentido, a tradição oral não apenas antecedeu os escritos, mas também
guiou o discernimento da Igreja primitiva sobre quais textos
correspondiam fielmente à fé recebida dos apóstolos. Lembre-se também,
por necessário, que as Cartas escritas pelo apóstolo Paulo são datadas
de antes dos Evangelhos canônicos.
O
Concílio Vaticano II ensina claramente que “a Sagrada Tradição e a
Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus
confiado à Igreja” (Dei Verbum, 10). A mesma constituição dogmática
afirma que “o que foi transmitido pelos Apóstolos abrange tudo o que
contribui para que o Povo de Deus viva santamente e aumente a sua fé”
(Dei Verbum, 8). O Catecismo da Igreja Católica-CIC confirma esta
perspectiva ao declarar que “a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura
estão intimamente unidas e ligadas entre si. Pois, ambas, brotando da
mesma fonte divina, formam em certo sentido uma só coisa e tendem ao
mesmo fim” (CIC, 80). Além disso, o Catecismo recorda que “a tradição
oral foi escrita sob a inspiração do Espírito Santo” (CIC, 76),
garantindo assim a fidelidade da transmissão até sua fixação no cânon.
Dessa
forma, a tradição oral é inseparável da formação do cânon bíblico. Ela
funcionou como matriz da redação dos textos sagrados e como fundamento
do reconhecimento da inspiração divina neles contida. Sem a oralidade, a
Revelação não teria sido preservada com fidelidade nem transmitida de
modo comunitário, e o Cânon das Escrituras não teria encontrado sua
forma definitiva.
Vale
insistir na constatação que um dos pontos polêmicos no diálogo entre
católicos e protestantes é a relação entre a Bíblia e a Igreja. A
doutrina protestante da "Sola Scriptura" afirma que a Escritura é a
única regra de fé, independentemente da Tradição e da autoridade
eclesial. No entanto, a própria história da formação do cânon bíblico
demonstra que não foram as Escrituras que fundaram a Igreja, mas a
Igreja primitiva, guiada pelo Espírito Santo, que reconheceu, preservou e
transmitiu as Escrituras inspiradas.
O
Novo Testamento não surgiu pronto. Nos primeiros séculos, as
comunidades cristãs utilizavam diversos escritos — evangelhos, cartas,
atos, apocalipses — e nem todos eram reconhecidos universalmente como
inspirados. Foi apenas com o discernimento eclesial, confirmado em
concílios regionais (como Hipona, 393, e Cartago, 397 e 419), e
posteriormente reafirmado pelo Magistério da Igreja, que se estabeleceu o
cânon de 27 livros do Novo Testamento.
Assim, a
própria existência da Bíblia como a conhecemos é fruto de um processo de
discernimento realizado pela Igreja, e não de uma lista previamente
dada pelas Escrituras.
A Igreja primitiva não se
baseou em critérios arbitrários, mas na Tradição Apostólica. Somente os
escritos que estavam em plena conformidade com a fé recebida dos
Apóstolos foram reconhecidos como Palavra de Deus inspirada. Essa
ligação intrínseca entre Escritura e Tradição é confirmada pelo
Catecismo da Igreja Católica: “Foi a Tradição Apostólica que fez a
Igreja discernir quais escritos deviam ser enumerados no Cânon Sagrado”
(CIC, 120).
A constituição dogmática "Dei Verbum",
do Concílio Vaticano II, ensina que “a Sagrada Tradição e a Sagrada
Escritura estão estreitamente unidas e comunicam-se intimamente entre
si” (DV, 9). Ambas brotam da mesma fonte, a Revelação divina, e têm o
mesmo fim: a salvação da humanidade.
Portanto, a Escritura só pode ser plenamente compreendida no seio da Igreja que a transmite e interpreta autenticamente.
Os
Padres da Igreja testemunham essa realidade. Santo Agostinho (†430)
afirma: “Eu não acreditaria no Evangelho se não fosse movido pela
autoridade da Igreja Católica” (Epístola contra os maniqueus", 5,6).
Esse
testemunho mostra que a fé na autoridade das Escrituras está
intrinsecamente ligada à autoridade da Igreja que as reconheceu e
preservou.
Em face desses elementos, percebe-se que
a doutrina da Sola Scriptura é insustentável do ponto de vista
histórico e teológico. Se a Bíblia, como Cânon, só existe porque a
Igreja, guiada pelo Espírito Santo, a reconheceu, então a própria
existência da Escritura depende da Tradição e da autoridade eclesial.
Destarte,
a afirmação católica permanece irretorquível: não foram as Escrituras
que fundaram a Igreja, mas foi a Igreja primitiva, já viva e guiada pelo
Espírito Santo, que discerniu, reuniu e transmitiu as Escrituras,
formando o cânon bíblico.
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