sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

19 DE JANEIRO: UMA DATA IMPORTANTE PARA O CEARÁ

 

Barros Alves

 

            Eu repito à saciedade que o fundador do Ceará não é Martim Soares Moreno. Não foi o valente e intrépido “guerreiro branco” mitificado pela escritura genial de José de Alencar, que assentou a pedra fundamental das terras alencarinas. Os louros cabem ao nobre açoriano Pero Coelho de Sousa, tão injustiçado pelos do seu tempo quanto esquecido pelos de agora. Mas, não é desse polêmico tema que desejo tratar neste artigo. Detenho-me em rememorar a grande batalha travada a partir do dia 19 de janeiro de 1604, nos contrafortes da Ibiapaba, luta renhida e sangrenta que culminou com a expulsão dos franceses daquele logradouro, como a marcar naquele momento os limites a oeste do que viria a ser o Ceará. O capitão-mor Pero Coelho e mais uns seis auxiliares próximos, entre os quais Martim Soares Moreno com 17 anos de idade, “duzentos índios frecheiros” e mais uns milhares que a eles se juntaram, “porque entre grandes e pequenos eram mais de cinco mil almas”, segundo o relato de Frei Vicente de Salvador na HISTÓRIA DO BRASIL, que teve a edição de 1918 anotada e comentada por Capistrano de Abreu.

            Pero Coelho empreendeu a aventura às suas próprias expensas, e nela gastou “toda a sua fazenda que era muita”, consoante o testemunho de Martim Soares Moreno, com o fito de dar combate aos franceses que de boa parceria com nativos infestavam o Maranhão, então parte Brasil conhecido, consoante o era a outra parte sul e leste até à Paraíba. Dali ao Maranhão nada havia sido explorado, era espaço desconhecido, terra de ninguém, apesar de no papel já existir donatário da Capitania, Antônio Cardoso de Barros, que aqui nunca pôs os pés. Até a Paraíba era o Brasil. Depois havia o País do Jaguaribe, o ancoradouro do Mocoripe e à sotavento deste a foz do Siará, onde, de fato nasceu Fortaleza e o nosso Estado, sob o batismo que lhe deu Pero Coelho depois que foi forçado a retornar da Ibiapaba, chamando o lugar de Nova Lisboa e Nova Lusitânia, respectivamente.

            O poderosos tuxauas da região, Diabo Grande e Mel Redondo, eram aliados dos franceses e, armados por estes, receberam a expedição de Pero Coelho com a violência de crueldade que lhes eram próprias. No dia 19 de janeiro de 1604 iniciou-se a grande luta, pois  “forma recebidos meia légua ao pé da serra com muita frechada e com sete mosquetes que disparavam sete franceses e faziam muito dano.” Ainda assim a tropa avançou, apesar de todos os percalços, da fome, da falta de água devido a estiagem e do cansaço advindo da longa jornada nos dias anteriores.  Os inimigos não paravam de atirar flechas e já contavam com a vitória. Mas, eis que por milagre cai torrencial chuva pela madrugada que aplacou a sede de todos e fez parar o ataque inimigo. Todos se alegraram e deram graças a Deus “e o capitão com esta alegria mandou matar um cavalo, que ainda levava, para confortar os soldados”, uma vez que o alimento não dava para todos, porque, como dito, a expedição contava com cerca de cinco mil pessoas.

            Finalmente, em face da bravura de Pero Coelho e seus homens, no dia 20 de janeiro, Diabo grande propôs uma negociação que não foi aceita. Então, índios e franceses voltaram à carga houve confronto das quatorze horas até à noite. Pela manhã do dia seguinte, Pero Coelho atacou sem dó. Houve recuo do inimigo. Essas batalhas foram sustentadas por mais de 20 dias, até que por intermédio de um chefe respeitado chamado Ubáuna, rogaram paz, o que foi aceito por Pero Coelho. Depois foi ter com ele Diabo Grande e Mel Redondo e entre eles se fez um pacto registrado em documento próprio, conforme narra Frei Vicente de Salvador. O capitão intentava continuar a saga até o Maranhão. Porém, os estropiados soldados não o consentiram e, em face da insubordinação dos comandados, Pero Coelho viu-se obrigado a “retirar-se ao Ceará, onde deixou Simão Nunes por capitão com quarenta e cinco soldados, e se veio à Paraíba buscar sua mulher e família para se tornar a povoar aquelas terras.” Com efeito, Pero Coelho retornou à Barra do Ceará com mulher e filhos para ser vítima de tragédia que a história deve relembrar antes com gratidão do que com comiseração, tão grande foi aquele homem. Antes do retorno ao Ceará, sofreu o diabo ante a ingratidão do governo local e, sobretudo,  da Coroa portuguesa, cujo rei tinha ouvidos abertos à fofoca e à maledicência. Vítima de acusações nunca bem explicadas, fruto de mentes tacanhas e invejosas, Pero Coelho foi relegado ao quarto de despejo da história. Um injustiçado!!!

            Por pertinente, transcrevo palavras de lucidez do respeitado historiador cearense Raimundo Girão ao se referir à expedição de Pero Coelho: “Muita injustiça têm cometido alguns historiadores no apreciar os acontecimentos dessa expedição, a ponto de considerar o chefe um execrado, sem se deterem no exame sereno do alto valor de sua corajosa iniciativa e no modo como tudo fez ele para FINCAR NA TERRA CEARENSE A ESTACA ZERO DA CIVILIZAÇÃO EUROPÉIA, trazendo a família – mulher e filhos -  e esforçando-se, em segunda viagem, para trazer à sua Nova Lisboa os indispensáveis elementos de consolidação.” (Girão comentando a “Relação do Ceará”, em “Três Documentos do Ceará Colonial”, Depto. De Imprensa Oficial do Ceará, 1967, pág. 190). Grifos meus.   O certo é que Pero Coelho foi um bravo. Expulsou os franceses da Ibiapaba liderando uma expedição mantida com seus próprios recursos, lançou a pedra fundamental de Fortaleza (Nova Lisboa) e do Ceará (Nova Lusitânia), foi à Paraíba por necessidade da missão a que se propôs, retornou ao Ceará com o fito de dar continuidade à colonização de nossos irmãos primevos. Porém, não apenas os homens que o cercavam o traíram, mas a natureza lhe foi avara. Forçado a retirar-se novamente, no trajeto rumo ao Rio Grande do Norte viu morrer de fome e sede o filho mais velho. Os demais da família não morreram porque foram socorridos pelo Padre Manuel Correia Soares. O que aqui foi contado é apenas uma ínfima parte da saga desse herói de dois mundos.

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