terça-feira, 25 de maio de 2010

Acordo, a qualquer preço, é anacrônico

Samuel Feldberg*

"ESTAMOS convencidos de que o método de consultas deve ser o adotado para resolver questões entre nossos países, e estamos determinados a continuar nossos esforços para remover possíveis diferenças e, assim, contribuir para garantir a paz. Meus amigos, trago a paz com honra. Acredito que seja a "paz para nossa era". Podem ir para casa, para noite de sono repousante." Palavras do presidente Lula ao assinar o acordo em Teerã?
Não, por mais semelhante que seja o discurso, as palavras acima foram proferidas, com o mesmo estardalhaço, por Neville Chamberlain, ao retornar da vergonhosa rendição diante de Hitler, entregando aos alemães uma indefesa Checoslováquia e dando o último passo para a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Mantidas as devidas proporções, ambos os líderes acreditaram na supremacia da negociação diplomática, até que os eventos negaram a sua viabilidade.
Mas o presidente Lula e seus colaboradores no Itamaraty preferem acreditar também nas declarações do Irã de que seu programa nuclear tem fins pacíficos, apesar das repetidas violações de acordos anteriores e do desenvolvimento de instalações secretas, como aquelas que foram identificadas em Qom.
Preferem ignorar as repetidas declarações do presidente Ahmadinejad, que clama pela destruição de Israel enquanto desenvolve mísseis de longo alcance e armas nucleares que permitam fazê-lo, ou garantam a cobertura dos que, nas fronteiras de Israel, se engajam na mesma função.
Lula certamente se beneficiou de sua projeção internacional, criou uma nova área de atuação para o grupo de países conhecidos como potências médias e talvez tenha acumulado pontos para suas candidaturas a Prêmio Nobel da Paz ou a secretário-geral das Nações Unidas.
Mas, certamente, não contribuiu em nada para o avanço nas negociações; apesar da declaração do presidente, afirmando que "ninguém podia fazer com que o país se sentasse para negociar. A única coisa que queríamos era convencer o Irã de que deveria assumir o compromisso com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e negociar, depositar seu urânio na Turquia. Isso foi feito".
O acordo firmado em Teerã é anacrônico, resgatando a proposta de outubro de 2009, sem levar em conta a quantidade adicional de urânio enriquecido de posse do Irã.
Veio acompanhada de uma declaração iraniana de continuidade de seu programa de enriquecimento de urânio, cuja interrupção era não somente o objetivo principal do acordo mas também a exigência do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
E provocou, quase que de imediato, uma aceleração no processo de implementação de novas sanções contra o Irã. Não tem, portanto, valor algum, a não ser dar a Lula razão ao afirmar que o acordo foi alcançado.
O Irã tem, sim, o direito de enriquecer urânio e de desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos.
Mas, para isso, tem que respeitar o espírito do Tratado de Não Proliferação, do qual é signatário, e aceitar as inspeções da AIEA.
O Brasil abandonou seu programa nuclear militar e, certamente, quer ver respeitados os seus direitos em relação às grandes potências.
Talvez, nesse contexto, possamos entender algumas das posturas brasileiras, sem que, entretanto, se justifique a candura no relacionamento com um regime que vem massacrando seus opositores internos (como se vários membros do governo Lula não tivessem já sofrido da mesma forma) e gerando enorme potencial de proliferação nuclear no Oriente Médio.
E o Brasil, que se vê como possível intermediário nas negociações entre Israel e os palestinos, certamente não tem nada a ganhar ao ser visto por Israel não como um interlocutor neutro, mas como aquele que abraça a causa de seu maior inimigo.

*Samuel Feldberg é cientista político, é coordenador da área Oriente Médio do Gacint (Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional), da USP, e professor de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco. Artigo publicado na Folha de São Paulo, ed. 22/05/2010.

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